Taxação de grandes fortunas: o flerte Supremo com novas violações
De que serve uma Constituição? Sob uma ordem liberal, protagonizada pelos indivíduos de certa nação, a chamada lei fundamental se destina a chancelar os direitos naturais anteriores à própria existência do governo, protegendo-os contra abusos de nacionais e estrangeiros e limitando os poderes dos governantes. Nesse sistema marcado pelo primado das garantias individuais, cada um desfruta da prerrogativa inalienável à sua propriedade e às suas escolhas contratuais, cabendo aos juízes, na qualidade de servidores públicos, a aplicação de leis que resguardem cada indivíduo contra arbítrios de mandatários eleitos. Contudo, há um país que, embora dito republicano e regido por uma Constituição cunhada como “cidadã”, menospreza as liberdades a ponto de entregar a sorte do patrimônio de cada cidadão comum à cobiça de potentados gastadores, delegando a última palavra de mais uma tragédia nacional a togados carentes de representatividade popular.
Mal chegado à presidência do STF, Edson Fachin acaba de recolocar em pauta uma ação do Psol, em cujos autos a sigla se insurgiu contra a inércia do congresso em regulamentar o imposto sobre grandes fortunas (IGF). Na falta de consenso político para a aprovação do novo tributo, os esquerdistas haviam se dirigido aos togados em busca de uma providência jurisdicional que forçasse o parlamento a instituir o IGF, aludido no art. 153, VI da Constituição. Após o voto do já aposentado Marco Aurélio Mello em favor da tese psolista, o caso mofava nos escaninhos da corte desde 2021 até que retornou aos holofotes pelas mãos de Fachin.
Contrariamente ao que você possa imaginar, caro leitor, o STF pode ordenar ao legislador que cumpra seu dever de ofício, mas tão somente na forma do art. 103, parágrafo 2 da nossa CF. Por integrarem a lei fundamental delineadora do sistema político e chanceladora das garantias individuais, os dispositivos constitucionais carecem, muitas vezes, de uma legislação que, descendo ao modo de exercício de direitos, confira efetividade plena às normas da Constituição. Nesses casos e tão somente neles, o uso pelo texto constitucional da fórmula “nos termos da lei”, ou de expressões análogas, apresenta-nos a Constituição como uma estrutura que demanda um recheio (infraconstitucional) para fazer sentido. Assim, como identificar a imprescindibilidade na edição de uma lei e, por consequência, a inconstitucionalidade na omissão do parlamento?
Embora longe de ser singela, a resposta me parece passar por uma investigação sobre a natureza da norma constitucional em questão. Se formos ao artigo 5, espinha dorsal da nossa CF, observaremos que grande parte dos nossos direitos e garantias individuais são amparados “na forma da lei”; vale dizer que são assegurados pela lei maior, mas sujeitos ao modus operandi descrito na legislação comum.
Uma ótima ilustração dessa complementaridade necessária entre os universos constitucional e infraconstitucional pode ser extraída do âmbito da propriedade imaterial. No terreno do direito autoral, por exemplo, dispõe o art. 5, XXVII da CF que aos autores cabe o direito ao uso exclusivo de suas obras, transmissível aos seus herdeiros “pelo tempo que a lei fixar”. Porém, se o parlamento não tivesse aprovado uma Lei de Direitos Autorais, os artistas, embora certos de sua propriedade sobre a obra e da transmissibilidade do direito aos herdeiros, seriam incapazes de prever o tempo durante o qual seus sucessores poderiam reivindicar a exclusividade sobre o uso do objeto da criação.
O mesmo raciocínio se aplica à propriedade industrial, assegurada pelo art. 5, XXIX da CF, mas cujo exercício também é condicionado aos termos de uma legislação infraconstitucional. Ora, se não fosse a promulgação da Lei de Propriedade Industrial, como seria possível adquirir, licenciar e alienar marcas e outros sinais distintivos dentro de parâmetros mínimos de segurança jurídica? Como poderiam os titulares de patentes exercer seus direitos se não houvesse uma lei definidora do tempo de fruição do privilégio provisório sobre as invenções? Todos os exemplos acima mostram que, sem a edição de legislação infraconstitucional, surgiriam entraves ou até empecilhos ao exercício do direito constitucional à propriedade.
Já a tributação deve seguir lógica inversa à anteriormente descrita. A instituição de um novo imposto, longe de ser um imperativo à efetividade de garantias individuais, reflete uma invasão do estado na esfera patrimonial do indivíduo, tendo de ser, por isso mesmo, evitada ao máximo e, se levada em consideração, restrita ao âmbito das deliberações de políticos eleitos. Como se sabe, a Constituição não cria tributos nem gera para os entes tributantes qualquer dever de fazê-lo; ela apenas oferece às diversas esferas de poder um rol de impostos possíveis, cuja instituição dependerá de consenso parlamentar.
Na esfera infraconstitucional, a própria lei aplicável (art. 8 do Código Tributário Nacional) contempla a hipótese de não-exercício da competência tributária, indicando que a inércia em instituir tributo não pode ser enxergada como omissão inconstitucional, mas como prerrogativa legítima de parlamentares eleitos. Assim sendo, nada autorizava o aposentado Marco Aurélio Mello a assumir as vestes de legislador e afirmar, em sua decisão acerca do imposto sobre grandes fortunas, que “a análise da conduta omissiva (…) faz-se considerado o contexto vivenciado”. Muito menos poderia ter o ex-togado formulado a pergunta retórica sobre se “a quadra histórica observada nos últimos trinta anos franqueia o abandono de instrumento arrecadatório previsto no texto constitucional? A resposta é desenganadamente negativa”. Aqui me permito eu indagar: quantos votos populares teve o ex-togado para proferir um juízo sobre o mérito da instituição de um tributo específico? A resposta, conhecida por todos, confere a exata dimensão do caos institucional por nós experimentado nos últimos anos.
Ações voltadas ao suprimento de “omissões” legislativas em assuntos tributários deveriam ser inadmitidas sem exame do cerne, pois o único poder não-eleito teria a obrigação de reverência perante a deliberação consciente do parlamento de não instituir tributos. A decisão do ex-ministro Marco Aurélio, assim como as possíveis canetadas de seus pares no mesmo sentido, representarão ofensa grave ao princípio constitucional da tripartição de poderes e obrigarão indevidamente o congresso a tributar “fortunas”, seja lá a acepção dada à palavra por esquerdistas ávidos pela rapinagem à riqueza alheia.
No Brasil, nós, indivíduos, ficamos cada vez mais alheios ao conceito do “we the people” que rege a Constituição norte-americana para sermos cada vez mais escravizados por uma pseudo-jurisprudência opressora, que nos suprime as liberdades enquanto avança sobre o nosso patrimônio. Retrato cru da perfídia do nosso atraso.

            

