Raiva silenciada: o perigo de ignorar os sinais da sociedade
Imagine que o motor de um carro complexo começa a superaquecer. Em resposta, em vez de investigar a causa — falta de óleo, um radiador com defeito —, nós simplesmente cortamos o fio da luz de advertência no painel. O silêncio reconfortante que se segue não é um sinal de saúde; é o prenúncio de uma falha catastrófica. Nossa sociedade, em sua busca por uma civilidade superficial, parece estar fazendo exatamente isso com a raiva. Tratamos a expressão da indignação não como um sintoma de um problema mais profundo, mas como o problema em si. A questão que me inquieta é: ao silenciar esse alarme, estamos realmente construindo a paz ou apenas nos tornando perigosamente entorpecidos aos nossos próprios defeitos?
A lógica por trás dessa supressão parece, à primeira vista, sensata: emoções como a raiva são voláteis e podem levar a danos. Portanto, moderá-las é um ato de proteção. Contudo, essa premissa desmorona sob um escrutínio mais atento, pois confunde a causa com a reação. A raiva raramente é o evento original; ela é uma resposta secundária, um sinal de que uma fronteira — seja ela moral, pessoal ou cívica — foi violada. É a febre que o corpo social gera para combater uma infecção. A força da reação (a raiva) não deve ser confundida com a força da causa (a injustiça ou disfunção original). Ao focarmos toda a nossa energia regulatória na força da reação, a força da causa continua a purgar sem ser confrontada.
Curiosamente, essa vigilância emocional não é distribuída de forma equânime. Existe um viés sutil, mas persistente, em policiar expressões tradicionalmente associadas ao masculino — assertividade, confronto, a própria raiva —, enquanto os danos causados por uma “bondade” mal direcionada ou uma passividade conivente muitas vezes recebem um passe livre. Questiono se isso não revela um desconforto mais profundo: uma sociedade que prefere lidar com os problemas que apodrecem em silêncio a enfrentar aqueles que gritam por atenção.
Assim como um indivíduo que reprime suas emoções não as elimina, mas as vê metastatizar em ansiedade ou depressão, uma sociedade que reprime a indignação a vê se transformar em ressentimento cínico, polarização entrincheirada e uma apatia corrosiva — doenças muito mais difíceis de diagnosticar e tratar.
A solução, portanto, não é endossar uma anarquia emocional onde a raiva se torna uma arma. Pelo contrário. O caminho para uma sociedade mais robusta e autoconsciente é desenvolver uma espécie de literacia emocional coletiva. Isso significa criar uma cultura que não apenas tolera a raiva, mas que a escuta, a interroga e a decodifica. Significa distinguir o mensageiro (a emoção) da mensagem (a causa subjacente) e ter a coragem de lidar com a segunda.
Uma comunidade que aprende a canalizar a energia da indignação para o debate construtivo em vez de reprimi-la não se torna mais caótica; ela se torna antifrágil. Ela desenvolve a resiliência necessária para se autocorrigir. A verdadeira marca de uma civilização avançada não é a ausência de conflito ou desconforto, mas sim sua capacidade de processá-los abertamente, transformando o calor da fricção em força motriz. Afinal, uma sociedade que aceita e aprende com todo o seu espectro emocional não é apenas mais genuína. É uma sociedade que está verdadeiramente viva.
*Willian Pereira é advogado.