O extermínio da existência pública

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Teoricamente, o ápice de uma ordem autoritária é o extermínio literal, isto é, físico, do indivíduo, por meio de sua execução, seja ela formalizada, ou não. Tirar a vida, cessar a existência, é a última de uma longa lista de medidas arbitrárias que o Estado é capaz de impor aos indivíduos. Enquanto vivo, o “inimigo público” pode ser alvo das mais sórdidas sevícias, mas mesmo essas só podem durar enquanto sua composição física permitir, e a morte vem para cessar definidamente o controle estatal sobre o corpo seviciado. Claro que isso não impede que, mesmo após a morte, a violência estatal possa ser posta a serviço da destruição daquilo que resta: a memória e a honra do inimigo caído.

Se, em ordens autoritárias mais escancaradas e francas, o aniquilamento físico é um fim rotineiramente atingido, não podemos afirmar que o mesmo se passe na atual juristocracia brasileira: não temos notícias de torturas físicas ou execuções por parte do Estado brasileiro. Isso não significa que o fim a que se presta o extermínio literal, isto é, apagar a existência daqueles que de alguma forma incomodam o poder estabelecido (mesmo o poder usurpado), não possa ser atingido de outra forma. De fato, Alexandre de Moraes inaugurou no Brasil o que chamarei aqui de “extermínio da existência pública”, ou “aniquilamento imaterial”, em contraposição ao aniquilamento físico, em que, embora o corpo do alvo reste preservado (mas não necessariamente sua mente, já que tornar-se vítima do arbítrio é sempre capaz de produzir danos psicológicos), a existência pública da pessoa é completamente anulada.

Não é que Moraes tenha inventando a coisa: na experiência totalitária soviética, o stalinismo se especializou em fazer desaparecer a memória daqueles que se convertiam em suas vítimas. Com base em relatos de agentes da NKVD (Ministério do Interior na União Soviética), Hannah Arendt nos conta que a polícia soviética possuía dossiês secretos sobre cada habitante, incluindo desde parentes, amigos até mesmo conhecidos fortuitos de cada um; de fato, mesmo diante de “crimes” já determinados, o acusado era interrogado rigorosamente, visando justamente a estabelecer essas relações, que, em tese, permitiriam ao regime obliterar a memória da existência dessa pessoa. “Verifica-se a importância desse completo desaparecimento das vítimas para o mecanismo do domínio total naqueles casos em que, por um motivo ou outro, o regime se defrontou com a memória dos sobreviventes”.

Se, em regimes totalitários — o que nunca foi o caso do Brasil, que nunca teve realmente um regime totalitário, se seguirmos a definição de Arendt —, a obliteração da memória vem no bojo do extermínio, na nossa juristocracia contemporânea, resta apenas o apagamento público, desacompanhado do perecimento do indivíduo. Não é à toa que o regime inaugurado em 2019, com a irônica desculpa de se combater a desinformação, se voltando, na realidade, contra o estado de coisas da política moderna, onde a internet ganhou relevância ímpar e a existência do indivíduo na esfera virtual tornou-se conditio sine qua non para participar efetivamente do debate público, possibilitou o alijamento de indivíduos da esfera pública pela simples operação de alijá-los da esfera virtual. É assim que uma das principais ferramentas de Moraes, logo referendada pela maioria de seus pares, tem sido o bloqueio das redes sociais, bem como a vedação de seu uso, daqueles que entram em seu radar.

É importante dizer que tal medida é flagrantemente abusiva e ilegal. Simplesmente, não há no ordenamento jurídico brasileiro, dentre o rol de medidas restritivas de direitos, a possibilidade de se impedir alguém de ter redes sociais ou de se manifestar, seja em caso de condenação e, ainda mais, em se tratando de alvos de investigação. A categoria do impedimento de se usar redes é produto da “cachola” de Moraes, vergonhosamente referendada em múltiplas ocasiões pelo STF, criando uma jurisprudência ilegal, posto que nunca o legislador estabeleceu tal tipo de restrição. Trata-se, outrossim, de medida claramente inconstitucional. Ora, posto que o banimento das redes tem sido justificado com o argumento de se impedir a disseminação de conteúdos ditos ilícitos, isto é, não apenas os já existentes, mas futuros, é muito claro para qualquer ser pensante que se está impedindo a expressão de forma antecipada, configurando censura prévia, violando, como qualquer bom estudante de Direito reconheceria, a Constituição. Ainda que estivéssemos falando realmente de conteúdos ilícitos — desinformação, fake news e quejandos não são tipificados como ilegais no Brasil —, o banimento de perfis presume que todo conteúdo futuro publicado será ilícito e acaba por penalizar mesmo conteúdos perfeitamente lícitos.

Os exemplos de aplicação dessa medida e medidas congêneres se avolumam no âmbito dos intermináveis inquéritos sigilosos, mas vale recordar alguns casos mais notórios.

Bastou que o influenciador conhecido como Monark publicasse questionamentos à transparência do TSE para que Moraes determinasse o bloqueio de suas redes sociais. Ainda que ele tivesse publicado conteúdos realmente ilícitos, não haveria parâmetro para o bloqueio, mas temos o agravante de que o que motivou tão severa medida foi restringir o alcance das críticas de um grande influenciador, críticas essas legítimas e próprias do debate público. Como Monark, há muitos outros, incluindo jornalistas como Guilherme Fiuza, Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino.

No caso de Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais no governo Bolsonaro, vítima de uma das mais escandalosas arbitrariedades do Estado brasileiro, quando o ônus da prova foi completamente invertido, uma das medidas adotadas por Moraes também foi o bloqueio de suas redes e a vedação à concessão de entrevistas. Como se isso não bastasse, o intocável ministro, em mais uma de suas execráveis “inovações” que, em seu devido tempo, tenho certeza, pertencerá à latrina do Direito, multou Martins em R$20 mil por, acreditem se quiserem, aparecer em um vídeo publicado por um de seus advogados. Proibido de dar qualquer tipo de declaração pública, Martins permaneceu em silêncio no vídeo, mas, para Moraes, foi o suficiente para multá-lo, argumentando que ele havia violado a proibição de usar redes sociais, ainda que o vídeo tenha sido publicado no perfil do advogado. Temos então, que o Estado brasileiro, por meio da caneta de um magistrado, se apropria da imagem de um cidadão, como se esta já não o pertencesse e, não satisfeito em cassar a palavra, cassa até mesmo a exposição da sua pessoa, como se a mera imagem de alguém fosse capaz de causar algum tipo de distúrbio à ordem pública.

Imbuído do mesmo espírito, Moraes também multou o senador Marcos do Val (Podemos-ES) em R$50 mil por uma fala na tribuna do Senado. Sim, por uma fala na tribuna do Senado. Marcos do Val também está proibido de usar redes sociais, mas o discurso foi publicado por outra pessoa sem qualquer vínculo aparente com o senador; ainda assim, Moraes entendeu que ele havia violado a vedação ao uso das redes sociais e o multou. Sabemos que a imunidade parlamentar já virou letra morta no Brasil, mas aqui temos um verdadeiro combo de vilipêndios à democracia. Primeiro, sendo as redes sociais elemento fundamental na comunicação de políticos com os cidadãos, a proibição do seu uso se equivale, no mundo atual, na condenação à invisibilidade eleitoral. Segundo, ao se criminalizar a divulgação de um discurso ocorrido no parlamento, priva-se o público, de forma completamente antidemocrática, de tomar conhecimento do que ocorre ali, bem como do direito de ter acesso, em sua plenitude, aos atos de seus representantes. Terceiro, punir a publicação de um discurso nas redes sociais, ainda que por um terceiro, tem como objetivo claro o desestímulo ao uso da tribuna para o exercício de críticas ao STF, o que é uma forma de tornar nula e vazia a atuação parlamentar.

Já nos últimos dias, o mesmo repertório de medidas draconianas foi aplicado ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Também proibido de usar redes sociais, seja diretamente ou por “meio de terceiros”, Bolsonaro chegou a cancelar uma entrevista com receio de ser preso. Em nova decisão, aparentemente “explicando” a anterior, Moraes argumenta que em nenhum momento o ex-presidente teria sido proibido de dar entrevistas ou proferir discursos, mas reforça que o conteúdo não poderia ser publicado nas redes sociais. Já na primeira decisão, ele havia ressaltado que a vedação incluía “obviamente, as transmissões, retransmissões ou veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em qualquer das plataformas das redes sociais de terceiros, não podendo o investigado se valer desses meios para burlar a medida, sob pena de imediata revogação e decretação da prisão“.  Na segunda decisão, Moraes afirma que Bolsonaro descumpriu a vedação de uso das redes sociais, já que um discurso proferido durante visita à Câmara foi publicado por terceiros nas redes sociais. Considerando que, como tenho dito, não há vida pública hoje que ocorra alheia às redes e que jornais impressos já são praticamente uma relíquia, sendo que mesmo os veículos mais tradicionais dependem da internet, temos então um duplipensar: Bolsonaro pode dar entrevistas, mas elas não podem ser divulgadas; Bolsonaro pode discursar, mas seus discursos também não podem ser divulgados; em suma, pode falar, mas não pode.

Claramente, Moraes impôs censura prévia não apenas a Bolsonaro, mas a toda a imprensa do país e, potencialmente, a todo e qualquer cidadão, pois qualquer um que ouse replicar qualquer coisa dita pelo ex-presidente está sob risco de também ter suas redes sociais bloqueadas. Tentando contornar a inelutável e óbvia acusação de que estaria impedindo um ex-presidente da República de se manifestar, ele cria um cenário no qual qualquer coisa dita por Bolsonaro que pare nas redes sociais possa ser usada para justificar uma prisão preventiva; trata-se de uma censura por tabela, ou o que podemos chamar de efeito inibidor (chilling effect), no qual o indivíduo abre mão de exercer seus direitos em sua plenitude por medo de represálias.

Essa nova escalada de medidas é, até então, o que mais se aproxima ao modus operandi soviético a que me referi no início. De fato, André Marsiglia argumenta, em artigo publicado no Poder 360, que, para além da censura seletiva, que pode ocorrer ou não dependendo do personagem político (o STF concedeu o direito de Lula dar entrevista mesmo quando estava preso), Moraes inaugurou a censura retroativa, na qual não apenas as falas futuras de Bolsonaro estariam sujeitas à mordaça (censura prévia), mas mesmo a publicação de conteúdos antigos. É como se se tentasse apagar a existência da vida pública do ex-presidente.

A motivação política por trás das decisões supracitadas e de todas as outras do mesmo teor que têm se avolumado nos últimos anos é clara. O tratamento é seletivo, os alvos são preferenciais e vale tudo, até mesmo censurar a imprensa, para atingir o desiderato: alijar personagens tidos como “indesejáveis” do debate público. Nesse regime, sua existência corpórea ainda permanece intacta, mas tudo o mais que lhe permita integrar a tribuna pública é suprimido. Para tal, o Estado se apropria de sua voz, mas também de sua imagem, buscando mitigar sua influência e ofuscar a memória da sua existência como ente público.

É difícil conceber sistema mais cruel dentre as possibilidades dentro de um regime autoritário que se reputa democrático. O objetivo não é que você seja apenas esquecido, mas que antes seja associado a tudo de negativo que sairá na imprensa por força de intermináveis inquéritos e processos, mesmo quando sigilosos, que sua imagem seja pervertida e sua honra arruinada, sem que possa se defender, pois você já não existe na arena onde é defenestrado: a esfera pública. Associemos a este último ponto também o fato de que, mesmo na arena onde teoricamente você ainda pode se defender, o devido processo legal é tolhido pelo não compartilhamento integral dos autos à defesa, bem como pela possibilidade de condenações em definitivo, sem chance de recurso, de indivíduos sem prerrogativa de foro. Nem aos piores tipos de criminosos que podem existir na face da Terra deve ser devotado tratamento tão desumano. Mesmo em países democráticos onde — lamentavelmente — ainda vigora a pena capital, o desiderato da punição, embora seja anular a existência física, não é o aniquilamento imaterial, a obliteração da memória pública do sujeito.

O extermínio da existência pública não é compatível com uma ordem democrática, e o fato de que isso é feito aqui com a desculpa de se defender a democracia torna-se ainda mais risível quando estamos diante de decisões que depõem contra a lógica e a inteligência. Que isso não se confunda com a perda de direitos políticos em uma condenação legítima, possibilidade que existe em nosso ordenamento jurídico e é temporária. Mesmo perdendo os direitos políticos, o indivíduo ainda pode existir publicamente. O que foi inaugurado no país vai muito além disso: o Brasil se converteu em um grande laboratório para experiências autoritárias, digno de fazer inveja mesmo aos ditadores mais nefandos.

Fontes:

Origens do Totalitarismo — Hannah Arendt

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/13-perfis-derrubados-por-moraes-que-podem-ser-reativados-por-musk/

https://www.poder360.com.br/poder-justica/martins-diz-que-veto-a-entrevista-ao-poder360-restringiu-sua-ampla-defesa/

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/12/14/moraes-multa-senador-em-r-50-mil-por-postagem-de-discurso-por-terceiro.htm

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/07/21/bolsonaro-cancela-entrevista-e-moraes-confirma-proibicao-de-fala-nas-redes.htm

https://www.infomoney.com.br/politica/em-momento-algum-bolsonaro-foi-proibido-de-conceder-entrevistas-diz-moraes/

https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/24/moraes-bolsonaro.ghtml

https://www.poder360.com.br/opiniao/moraes-inventa-a-censura-retroativa-no-pais/

 

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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