IOF: a ressignificação da conciliação junto ao novo “Poder Moderador”

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Conciliação significa, em linguagem corrente, a ação ou o efeito de agir de maneira a harmonizar alguém que esteja em desacordo com outrem. Na esfera jurídica, dá título à audiência durante a qual as partes em processo judicial discutem as condições para a composição amigável de um litígio. Tanto no sentido comum quanto no técnico, a palavra pertence ao mesmo campo semântico de pacificação, pois ambas aludem ao alcance da paz e da estabilidade nas relações mediante a resolução de conflitos. Contudo, em tempos de um autoritarismo que sequer ousa dizer o próprio nome, a linguagem vem sendo pervertida e os conceitos ressignificados como meio de travestir, sob a auréola de diálogo institucional, o que não passa de exercício abusivo do poder.

Em plena Gilmarpalooza, uma única canetada conseguiu ofuscar os acertamentos do evento classificado, pela Transparência Internacional, como sendo o “maior lobby judicial do planeta”. Tratou-se de despacho do ministro Alexandre de Moraes, que, durante o convescote lisboeta, suspendeu, em caráter liminar, tanto o decreto de Lula que elevava a alíquota do IOF quanto o decreto legislativo do parlamento que derrubava a determinação presidencial. Não satisfeito com o cancelamento simultâneo de deliberações de ambos os poderes eleitos, Moraes ainda designou uma audiência de conciliação onde colocará, frente a frente, os representantes do Executivo e do Legislativo para que, sob o martelo alexandrino, dialoguem acerca de política fiscal. Tudo sob a alegação de que o “indesejável embate entre as medidas do Executivo e do Legislativo” contrariaria a independência e a harmonia entre os poderes, princípios republicanos que, sob a ótica togada, cabe ao STF restaurar via conciliação. Contudo, quem mais uma vez rasga a ordem constitucional é o próprio Moraes ao avocar para si um poder que não lhe cabe, mediante ato processual impróprio ao caso.

Ao referir-se ao artigo 2º da Constituição, consagrador do binômio independência e harmonia, o togado fingiu desconhecer que, dentre os poderes harmônicos e independentes entre si, o dispositivo arrolou também o Judiciário, cujo convívio com os demais braços estatais tem de ser regido pelo texto constitucional e não pelo desejo de figurões. Na mesma toada de esquecimento seletivo, ainda negligenciou o fato de que o constituinte de 88 optou por não delegar a qualquer dos poderes a faculdade de arbitrar eventuais conflitos entre os demais, como se moderador fosse. Pelo modelo vigente, as relações entre os três poderes são pautadas pela autonomia de cada um no desempenho de suas funções constitucionais, inclusive na implementação dos chamados freios e contrapesos, de modo a que cada braço zele por suas atribuições exclusivas, impedindo o avanço dos outros sobre sua própria seara. Longe do que imagina Moraes, a harmonia aludida na Constituição não reside na inexistência de conflitos, mas no uso eficaz dos mecanismos de contenção, mediante os quais cada poder imponha limites aos arreganhos dos demais.

De acordo com essa leitura literal do texto constitucional, o congresso agiu corretamente ao editar um decreto legislativo para barrar decreto presidencial irregular, que elevava a alíquota de um tributo regulatório para fins de aumento na arrecadação. Assim, foi arbitrária a decisão de Moraes em relação a um Legislativo que nada fez além de empregar instrumento previsto na Constituição para frear desmando do Executivo. Na canetada, o togado esvaziou a própria figura do decreto legislativo, ferramenta muito útil na prevenção ao surgimento de normas inconstitucionais, geradas a partir de atuações legiferantes indevidas, muitas delas, diga-se de passagem, protagonizadas pelo próprio Judiciário!

Da mesma forma, esvaziou o controle concentrado de constitucionalidade previsto na Constituição, assim como todas as ações nela previstas para tanto. Afinal, em assuntos de grande repercussão social, Moraes e seus pares têm deixado de lado a análise da constitucionalidade de leis e decretos para se tornarem condutores de audiências de conciliação entre membros dos demais poderes. O roteiro, lançado em casos como o da Lei do Marco Temporal e da Operação Verão do governo do estado do Rio de Janeiro, será reprisado nas discussões sobre o IOF. Em vez de analisarem se a norma controvertida é ou não compatível com a Constituição, entregando a prestação jurisdicional pleiteada pelas partes envolvidas em ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade, togados supremos têm sentado à mesa com figurões da República em busca de “conciliação” para os interesses em litígio.

Contudo, audiências de conciliação são mencionadas, pelo Código de Processo Civil, como atos processuais praticados durante o chamado processo de conhecimento, em que o juízo de primeira instância trava contato com os fatos controversos, com as respectivas provas, e até mesmo com o interesse das partes na negociação de acordo para o encerramento da disputa. Cenário bem diverso marca as ações em tramitação no STF, onde togados, impedidos de reapreciarem fatos e/ou provas, têm de restringir sua atuação a matéria de direito, aferindo a conformidade de leis ou de decisões de outras instâncias com as normas e os princípios da Constituição. Portanto, as sessões conciliatórias no Supremo, além de carecerem de previsão legal, ainda apequenam a corte, transformando aqueles que deveriam integrar a nata da nossa magistratura em réplicas caricatas de juízes de assuntos bem mais rotineiros e a dita corte constitucional em juizado de pequenas causas.

Mas, no Brasil das distorções, quem se importa com a honra da toga e com o estrito cumprimento dos deveres de ofício quando o que está em jogo é a expansão do próprio mando e a subjugação dos demais poderes? Só me pergunto como ficaria a voz de autoridade de Moraes se os representantes do Legislativo, do Executivo ou de ambos, na forma do CPC, manifestassem seu desinteresse na composição consensual e deixassem de comparecer à audiência. Indagação retórica, pois, como é notório, o “interesse” da classe política em satisfazer os anseios alexandrinos perpassa, e muito, quaisquer considerações jurídicas. Enquanto nossos caciques políticos dependerem de favores inconfessáveis de togados, seguiremos acompanhando e narrando a atuação de um poder moderador fake, desprovido de legitimidade dinástica ou constitucional.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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