Entre eleições e desmandos: o Judiciário que dita as regras

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Se vocês me derem, por ocasião das eleições no ano que vem, 50% da Câmara e do Senado, eu mudo o destino do Brasil”. A frase, proferida pelo ex-presidente Bolsonaro durante a última manifestação na Avenida Paulista, sintetizou as posturas manifestadas por todos os políticos presentes ao ato e a aposta da oposição no evento erigido à condição de “chave mestra” para o arrombamento das portas do autoritarismo judicial: as eleições de 26. Porém, enquanto mandatários postergavam expectativas para a próxima corrida e reverberavam os mais que notórios arbítrios judiciais, sem a apresentação de medidas concretas para o seu enfrentamento, togados davam novo passo em direção ao reforço no controle estatal das informações.

No dia seguinte ao palanque em São Paulo, o TSE divulgou sua portaria 289, instituidora de um Grupo de Trabalho Consultivo destinado à propositura de medidas de “combate à desinformação eleitoral”. O petit comité, nomeado a dedo pela ministra Carmen Lúcia, deverá entregar suas conclusões e propostas à togada que, em 22, chancelou a censura por ela reconhecida como inconstitucional, mas justificada sob o pretexto de ser “apenas até o dia da eleição”, e que, no julgamento sobre a responsabilização das redes por conteúdos, classificou a população brasileira como um coletivo de “213 milhões de pequenos tiranos”. De posse dos “resultados” apontados pelo grupo, é bem provável que a ministra, à frente da corte eleitoral até junho de 26, aproveite o restante de seu mandato para sugerir e aprovar uma resolução ainda mais restritiva às liberdades individuais que suas predecessoras.

Não é de hoje que o tribunal vem atuando como linha auxiliar do STF na implementação da mordaça e na intimidação a figuras enxergadas como opositoras políticas de togados em exercício. Durante a última disputa presidencial, o TSE editou a resolução 23.714 de 20 de outubro de 2022 para dispor acerca do “enfrentamento à desinformação sobre a integridade do processo eleitoral”. Além de vergonhosamente intempestiva, a norma usurpava atribuição exclusiva do parlamento e legislava, criando obrigações de não-fazer e suas respectivas penalidades. A resolução, produto de um autoritarismo então em escalada, girava em torno de expressões como “fatos sabidamente inverídicos” e “integridade do processo eleitoral”, cujo cunho genérico era desenhado para lastrear perseguições. No entanto, às vésperas do segundo turno das eleições, parlamentares que, no plano da retórica, alardeavam suas críticas ao modus operandi autoritário, não tomaram qualquer providência prática para sustar a resolução e muito menos para interromper um processo eleitoral regido por norma tão autoritária quanto aquela.

Nas eleições de 24, o enredo se repetiu em tons ainda mais ousados. Fortalecidos pela onda de prisões, por sanções financeiras e pelo cancelamento de passaportes no pós-08.01, togados do TSE, então sob o comando do poderoso ministro Alexandre de Moraes, editaram a resolução 23.732/24. Juízes se travestiram de legisladores e, pela primeira vez, impuseram às plataformas digitais uma obrigação de busca ativa de conteúdos relativos a “atos antidemocráticos”; “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”; “grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência contra a integridade física de membros e servidores da Justiça eleitoral e Ministério Público eleitoral ou contra a infraestrutura física do Poder Judiciário”; e “comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação”. Na ocasião, a corte dobrou a aposta em um rol extensíssimo de expressões e termos permeados pela indefinição e pela subjetividade e, por isso mesmo, passíveis de abarcarem qualquer tipo de conduta, inclusive todas as legítimas manifestações opinativas e o livre exercício do direito de crítica.

Porém, nossa oposição parlamentar tornou a fazer ouvidos moucos ao arbítrio. Em vez de editar um decreto legislativo para zelar por sua exclusividade na atuação legislativa, sustando a resolução abusiva do TSE, optou por dedicar toda sua energia – e os nossos recursos – à disputa municipal em curso. A colheita de mais de um quinquênio de desmandos não respondidos à altura por um parlamento apassivado viria no ano seguinte, com sabor bem mais amargo.

Por ampla maioria, o STF acaba de promover sua própria “regulação das redes” ao declarar parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet e reescrever o teor da norma. Mediante um rol de teses estranhas aos pedidos das partes litigantes, a corte se arrogou a definir os casos de responsabilização das plataformas pela manutenção no ar de conteúdos ditos “criminosos”, dentre os quais figuram postagens supostamente elogiosas a “atos antidemocráticos”, seja lá qual for o sentido atribuído por togados a essa expressão vedete em suas falas inflamadas. Aliás, merece nota o voto da ministra Carmen Lúcia nesse recente julgamento, durante o qual ela não perdeu a oportunidade de frisar que a responsabilidade das big techs por conteúdos “impróprios” havia sido prenunciada pelas resoluções eleitorais acima citadas. No país às avessas, normas inconstitucionais e ilegais foram louvadas como precursoras do enfrentamento aos chamados “discursos de ódio” nas redes.

O ambiente censor e policialesco fomentado por nossa cúpula judiciária, inclusive e sobretudo pela corte “julgadora” do que se pode dizer ou fazer durante as eleições, implicará necessariamente o descarte de atores políticos tidos como inconvenientes ao establishment, na vedação à disseminação de conteúdos políticos, e na intromissão estatal indevida não apenas na esfera das manifestações individuais como também na atividade jornalística. Assim, as expectativas irrestritas depositadas por nossa elite política nas eleições de 26 soam como manifestação de uma ingenuidade inadmissível na vida pública. Afinal, partindo das premissas de que Bolsonaro represente a direita nacional e de que, por direita, se entenda a defesa do capitalismo e da legalidade estrita, como confiar ao eleitorado a tarefa de eleger metade de um congresso direitista se, entre a vontade do eleitor e a proclamação do resultado das urnas, há um judiciário contaminado por um ativismo politiqueiro? Como garantir, como o fez o ex-presidente na Paulista, que candidatos eleitos como sendo alinhados a ele venham a agir como forças efetivas de mudança nos destinos da nação?

Além de personalista, a afirmação parece inexequível, antes que mandatários tenham a coragem e a determinação necessárias ao desempenho de seu papel constitucional de freio aos desmandos do poder não-eleito. Na presente conjuntura, o atrelamento da mudança a perspectivas eleitorais só faria algum sentido se a palavra “mudança” fosse interpretada em sua acepção gatopardista, em que seria necessário que tudo mudasse para que tudo continuasse na mesma. Mudança cosmética, mera troca de nomes em um panorama que permaneceria inalterado, ou seja, regido por togados a critério dos desejos destes e em descompasso com o texto constitucional.

Se nossos políticos ditos de oposição se contentarem com a posição de meros títeres de juízes, então que sigam apostando apenas nas eleições de 26, ao custo das nossas liberdades individuais. Se efetivamente desejarem retomar o protagonismo a eles conferido pelo voto popular, terão de agir de pronto mediante a adoção de todos os instrumentos constitucionais e legais ao seu alcance. A escolha entre um incerto 26 e as medidas concretas no amanhã fará a diferença entre os meninos e os homens.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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