Friedrich Hayek e o perigo do totalitarismo: uma leitura atual

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Prefácio: do estudo à apresentação

Esta resenha nasceu de uma experiência intelectual intensamente gratificante. Como parte de minhas atividades junto ao núcleo de formação do Instituto Liderança e Liberdade (ILL), recebi a missão de apresentar O Caminho da Servidão, obra seminal de Friedrich Hayek. Não seria uma tarefa solitária, onde dividi esta responsabilidade com outro associado, Jaison Carvalho, o que enriqueceu ainda mais o processo.

Nossa preparação foi meticulosa. Antes mesmo de abordar o conteúdo específico do livro, mergulhamos na biografia de Hayek, buscando entender o homem por trás das ideias. Nascido na Viena imperial, testemunha do colapso de uma ordem social, economista formado em uma das mais vibrantes tradições intelectuais europeias, Hayek trazia em sua formação e experiência elementos cruciais para compreender a profundidade de sua análise sobre os perigos do totalitarismo.

As semanas que antecederam a apresentação foram de estudo intensivo. Cada capítulo gerava longas conversas entre mim e meu parceiro de apresentação. Debatíamos não apenas o conteúdo explícito, mas também as implicações contemporâneas de cada argumento de Hayek. A cada página virada, tornava-se mais clara a atualidade surpreendente de um livro escrito há mais de oito décadas.

O momento da apresentação aos demais associados do ILL foi um exercício de síntese e diálogo. Buscamos não apenas expor as ideias de Hayek, mas provocar uma reflexão coletiva sobre suas aplicações na realidade brasileira contemporânea. O debate que se seguiu foi vibrante, repleto de concordâncias, questionamentos e conexões inesperadas com outros pensadores da tradição liberal.

Foi justamente a riqueza desse processo, indo da leitura solitária ao debate coletivo, que me motivou a organizar estas reflexões na forma de resenha. O texto que segue não é apenas uma análise literária, mas o resultado de um percurso de aprendizado compartilhado, onde as ideias de Hayek foram examinadas, questionadas e aplicadas ao mundo que habitamos. Convido o leitor a percorrer comigo esta jornada, explorando uma das obras mais influentes e controversas do pensamento político-econômico do século XX.

A resenha

Publicado em 1944, durante os anos finais da Segunda Guerra Mundial, O Caminho da Servidão permanece uma obra assustadoramente atual. Neste livro profundo e presciente, Friedrich Hayek nos apresenta uma tese poderosa onde o abandono dos princípios liberais em favor do planejamento centralizado representa não apenas uma mudança econômica, mas um afastamento radical dos alicerces da civilização ocidental.

O que torna a leitura de Hayek tão impactante é sua capacidade de desafiar nossas pressuposições. Contrariando a narrativa dominante, ele argumenta que o socialismo, longe de ser progressista, é fundamentalmente reacionário, sendo um retorno a ideias coletivistas que o liberalismo havia superado. Com notável lucidez, Hayek identifica as falhas que permitiram esse retrocesso: a concessão gradual de poder ao estado e a adoção do utilitarismo, que desviou o debate dos princípios éticos para questões de mera eficiência.

Uma das centelhas mais valiosas de Hayek é sua identificação da “grande utopia” e a falsa promessa de que planejamento econômico centralizado pode coexistir com liberdade política. Ele traça um panorama histórico convincente de como o socialismo, originalmente autoritário sem disfarces, desenvolveu uma face “democrática” para se tornar mais palatável. Essa transformação incluiu a promessa sedutora de uma “liberdade contra a escassez material”, confundindo, de forma perigosa, liberdade com poder e riqueza. O que me impressiona é como Hayek resiste à tentação de demonizar seus adversários, atribuindo o apoio ao socialismo principalmente à inocência e ignorância econômica, não à maldade deliberada.

A distinção fundamental que estabelece entre individualismo e coletivismo é esclarecedora. Embora ambos declarem querer melhorar a vida das pessoas, seus métodos divergem radicalmente. Enquanto o individualismo liberal permite que cada pessoa persiga seus próprios objetivos dentro de um quadro de regras gerais, o coletivismo exige submissão a um plano centralizado para atingir objetivos políticos predeterminados. Como afirma Thomas Sowell, “A questão mais básica não é o que é melhor para todos, mas quem deve decidir o que é melhor.” Hayek não é um extremista simplista. Ele reconhece a necessidade de intervenção estatal em áreas como bens públicos e externalidades, mas insiste que as leis devem ser iguais para todos.

É revelador como Hayek demoliu, décadas atrás, argumentos que ainda hoje ouvimos. Ele refuta a ideia determinista de que o capitalismo inevitavelmente gera monopólios, demonstrando que historicamente estes surgiram primeiro em países com forte intervenção estatal. Ironicamente, são as políticas antimercado que criam as próprias condições depois citadas como “falhas do mercado”. Com igual perspicácia, ele desmancha o argumento de que economias modernas complexas requerem planejamento central, explicando que é justamente essa complexidade que torna o planejamento centralizado inviável. Esse insight de Hayek ressoa fortemente nos debates contemporâneos sobre regulação de plataformas digitais e economias de rede, onde frequentemente se invoca a complexidade como justificativa para maior intervenção.

A incompatibilidade entre planejamento econômico e democracia genuína é outro tema central da obra. Hayek observa que, embora as pessoas possam inicialmente votar por um governo planejador, logo descobrem que não conseguem concordar democraticamente sobre os objetivos específicos. Esse impasse leva inevitavelmente à delegação de poder a “especialistas” com autoridade quase ditatorial. Para Hayek, a democracia não é um fim em si, mas um meio para preservar a paz e a liberdade individual. Quando desviada para implementar planejamento econômico, ela acaba se autodestruindo. Essa análise oferece uma perspectiva valiosa sobre o crescente fenômeno da “tecnocracia” nas democracias ocidentais, onde decisões fundamentais são cada vez mais retiradas do âmbito da deliberação democrática e transferidas para agências reguladoras “independentes” e organismos supranacionais.

Talvez a análise mais cortante de Hayek seja sobre a incompatibilidade entre planejamento econômico e estado de direito. Em um sistema onde as leis são claras, previsíveis e iguais para todos, o planejamento central se torna impossível, pois exige decisões discricionárias caso a caso. Assim, em um estado planificado, os cidadãos acabam submetidos não a leis, mas à vontade arbitrária dos planejadores, e esta é a diferença fundamental entre uma sociedade livre e uma totalitária. A tensão entre Estado de Direito e governança administrativa é hoje ainda mais aguda, como aponta o jurista Philip Hamburger em seu The Administrative Threat (2017), onde argumenta que o crescimento do estado administrativo representa um retorno a práticas pré-constitucionais de governo, como o absolutismo dos reis ingleses.

Um dos argumentos mais potentes do livro é a demonstração de como liberdade econômica e outras liberdades são inseparáveis. Viver é fazer escolhas econômicas! Decidir como usar recursos escassos para diferentes fins. Quando o governo controla todos os meios econômicos, ele efetivamente controla todos os fins. Hayek apresenta o dinheiro como “um dos maiores instrumentos de liberdade já inventados”, permitindo que as pessoas busquem seus objetivos sem pedir permissão. Sob planejamento central, mesmo quando há liberdade nominal de expressão, esta se torna ilusória quando o governo controla papel, locais de reunião, empregos etc.

“Quem a Quem?”. Esse título provocativo de um dos capítulos expõe a questão central do planejamento econômico: quem decide quem recebe o quê? No livre mercado, a alocação é impessoal. Vendedores e compradores interagem sem necessariamente conhecer ou discriminar uns aos outros. Sob planejamento central, funcionários devem explicitamente determinar quem merece o quê, criando um sistema de discriminação deliberada que leva ao pior tipo de segregação. Hayek demonstra como fascismo e comunismo emergiram como variantes da mesma disputa sobre quem controlaria o planejamento.

O planejamento central seduz com a promessa tentadora de segurança total contra qualquer mudança adversa. Uma utopia impossível num mundo onde a inovação constantemente transforma o panorama econômico. O exemplo que Hayek apresenta é conceitualmente cristalino: como poderia qualquer sistema garantir renda permanente aos fabricantes de carruagens após a invenção do automóvel? O dilema é inescapável. Para manter essa promessa de segurança absoluta, o estado planificador teria apenas duas opções igualmente nefastas: ou seria impedir o progresso tecnológico (condenando a sociedade à estagnação) ou criar um sistema totalitário que determine arbitrariamente onde cada pessoa pode trabalhar (destruindo a liberdade ocupacional). Essa análise ganha relevância ainda mais dramática no mundo contemporâneo, onde a automação e inteligência artificial transformam profissões em ritmo acelerado. O apelo por “segurança econômica garantida” ressoa fortemente em períodos de rápida transformação tecnológica, mas a solução proposta pelos planejadores centrais permanece tão impraticável e perigosa quanto era em 1944. Como Hayek percebeu com clareza inquietante, a busca por absoluta segurança econômica inevitavelmente cobra o preço da liberdade.

Em um de seus capítulos mais citados, Hayek explica por que regimes totalitários inevitavelmente selecionam os indivíduos mais imorais para posições de liderança. Julgo três fatores que facilitam esta seleção. Inicialmente, pessoas com visões mais simplistas concordam mais facilmente entre si. Segundo, pessoas sem convicções próprias aceitam mais passivamente sistemas impostos por terceiros. Por fim, é muito mais fácil unir pessoas pelo ódio a um inimigo em comum do que por um programa positivo. Um sistema totalitário exige subordinados dispostos a executar ordens cruéis sem questionar sua moralidade. Essa análise psicológica e sociológica antecipa, em muitos aspectos, os estudos posteriores de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal” e oferece uma perspectiva útil para compreender os mecanismos de ascensão de líderes populistas contemporâneos.

O controle do pensamento é consequência inevitável do planejamento econômico, segundo Hayek. Ele observa que a estatização da indústria sempre caminha lado a lado com a estatização do pensamento, pois o regime deve fazer todos acreditarem nos mesmos objetivos. Os regimes totalitários sistematicamente destroem a noção de verdade objetiva, substituindo-a pela “verdade política”. A linguagem é pervertida, críticos são silenciados e intelectuais são cooptados. Até ciências supostamente objetivas como Física e Medicina são submetidas a critérios políticos, resultando em estagnação intelectual.

Uma das contribuições mais controversas e esclarecedoras do autor é demonstrar as raízes socialistas do nazismo. Citando diretamente pensadores socialistas alemães que influenciaram o nacional-socialismo, ele mostra que o fascismo não se opunha aos elementos socialistas do marxismo, mas aos seus elementos liberais (internacionalismo, democracia e pacifismo). Como afirma João Eigen, “Hitler e o nazismo não rejeitavam o socialismo em si, mas sim sua vertente internacionalista e igualitária, reinterpretando-o sob uma ótica nacionalista e racial.” Dessa forma, o que os nazistas rejeitavam no marxismo não era o controle estatal da economia, mas a ideia de que este controle deveria beneficiar igualmente todos os trabalhadores independentemente de nacionalidade ou raça.

Ao concluir a obra, Hayek nos apresenta duas visões contrastantes sobre a ordem internacional. Na primeira parte, ele critica brilhantemente organizações econômicas supranacionais, antecipando problemas que a União Europeia enfrentaria décadas depois. Na segunda parte, propõe uma “federação liberal” supranacional que parece entrar em tensão com suas próprias críticas anteriores. Essa aparente contradição merece análise mais detida. Hayek não está propondo um simples “super-estado” planejador, mas uma estrutura federativa dedicada exclusivamente a garantir a paz e impedir políticas econômicas prejudiciais ao comércio internacional. Sua proposta baseia-se em uma distinção fundamental entre o “estado negativo” (protetor de direitos) e o “estado positivo” (planejador econômico), conceitos que retomaria em obras posteriores, como Os Fundamentos da Liberdade. A federação hayekiana operaria exclusivamente no âmbito
“negativo”, impedindo práticas predatórias entre estados, sem autoridade para planejar economias nacionais.

Essa proposta, entretanto, contém uma tensão latente que Hayek não resolve completamente: como impedir que uma instituição com poderes para restringir certas políticas nacionais não acabe, gradualmente, adquirindo poderes positivos de planejamento? A experiência histórica com o federalismo, tanto nos EUA quanto na Europa, sugere que essa é uma pergunta válida, como apontado por teóricos como Hans-Hermann Hoppe e Jesús Huerta de Soto. Em defesa de Hayek, pode-se argumentar que ele estava buscando uma solução prática para o problema da guerra entre estados, mesmo reconhecendo os riscos institucionais envolvidos.

O Caminho da Servidão não é apenas um clássico do pensamento político-econômico, mas um alerta permanente sobre como sociedades livres podem gradualmente perder suas liberdades não através de revoluções violentas, mas por meio de pequenas concessões bem-intencionadas ao poder estatal. Em um mundo onde crescem os apelos por mais intervenção, a mensagem de Hayek permanece perturbadoramente relevante.

*Rodrigo Luis Moschetta é associado ao Instituto Liderança e Liberdade (ILL), graduado em Engenharia Ambiental, pós-graduado em Engenharia de Segurança do Trabalho, MBA em Gestão Estratégica da Administração Pública.

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