Por que o governo Lula insiste em ignorar uma política fiscal mais contracionista?
Ignorando o ciclo econômico inflacionário, o governo Lula III comete erros do passado e prejudica o futuro da economia brasileira no médio e longo prazo. A situação pode ser explicada através de uma narrativa utilizada pela heterodoxia nacional.
O Brasil é um país que, desde a década de 1950, sofre com problemas de alta inflação. O livro Economia Brasileira Contemporânea – 2ª edição, organizado pelo economista Fábio Giambiagi com a participação de outros economistas brasileiros, relata que o país, desde a metade do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), se apoiou numa política fiscal e monetária expansionista, cujo objetivo era o crescimento econômico através de emissão de papel moeda, expansão do crédito e investimentos massivos em capital físico, sobretudo, em infraestrutura pesada. O historiador Amado Cervo Bueno vai mais além e afirma que o Brasil, entre 1930 e 1989, viveu o que ele alcunhou de “Estado Desenvolvimentista”, onde o país visava desenvolver sua economia através de uma indução do Estado na economia.
Com essa abordagem, de acordo com o livro, o Brasil cresceu cerca de 7% ao ano, entre 1950 e 1980, mesmo com patamares altíssimos de inflação, como foi o caso da hiperinflação a partir dos anos 1980 e, de cenários inflacionários bastante agudos, como na década de 1960, onde a inflação estava na casa dos 80% a.a. Neste mesmo livro, o processo de como o Plano Real foi implantado é destacado pelos economistas. Para o seu sucesso, o plano contou com o chamado “Tripé do Plano Real”, ou seja, a desindexação, uma política fiscal contracionista e a famigerada “ancoragem cambial”. No entanto, foquemos no segundo pilar deste tripé, a política fiscal contracionista. O livro traz um relato do economista e participante da implantação do Plano Real, Edmar Bacha. O economista afirma que, num cenário inflacionário tão grande e com as contas públicas tão abastadas, era necessário que se fizesse um ajuste fiscal a fim de garantir a saúde da nova moeda e do novo plano econômico. Com isso, o Real e, sobretudo, os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) tiveram um relativo cumprimento dessa nova abordagem e optaram por exercer uma política tanto fiscal quanto monetária de índole contracionista.
Porém, o governo que realmente deu aula de política fiscal e monetária contracionista foi o governo Lula I (2003-2006), onde o ministro da Fazenda Antonio Palocci e o presidente do Banco Central do Brasil Henrique Meirelles executaram essas respectivas políticas de forma mais contracionista do que os governos de Fernando Henrique Cardoso, como ressalta a obra organizada por Fábio Giambiagi. A pergunta que fica é: será que o presidente Lula não aprendeu nada com o passado?
Parece que não. Lula, a partir de seu segundo governo (2007-2010), nomeou Guido Mantega como novo ministro da Fazenda. Guido era um dos nomes mais radicais heterodoxos dentro do PT (Partido dos Trabalhadores) e defendia que Lula, ainda na campanha para as eleições de 2002, não pagasse a divida externa que o Brasil possuía com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Em sua passagem como ministro da Fazenda, Guido Mantega propôs uma gradual mudança nas políticas que estavam sendo executadas e, com isso, as políticas monetárias e, sobretudo, fiscais começaram a se expandir. Com a eleição de Dilma Rousseff, Mantega continuou com o cargo de ministro da Fazenda e anunciou, em 2011, no primeiro governo de Dilma, uma abordagem mais radical e de rompimento com as políticas econômicas executadas entre 1990 e 2006, ou seja, de contração de gastos e uma menor expansão monetária e de crédito. A famigerada “Nova Matriz Econômica” marcou uma nova era da política econômica nacional, onde o passado encontrava o presente. Basicamente, a “NME”, como também assim era conhecida, visava à expansão monetária e, sobretudo, do crédito para estimular grandes indústrias e empresas nacionais, além de desonerações tributárias aos mesmos. Ou seja, essa era a velha política industrial desenvolvimentista brasileira que marcou os governos desde Vargas até a ditadura militar – por isso, o passado encontrava o presente.
Essas políticas adotadas desde o governo Lula II acarretaram a crise econômica que começou em 2014 e protagonizou a recessão de 2015. Aliás, o Brasil, em 2015, teve seu pior resultado econômico em 25 anos, com retração do PIB (Produto Interno Bruto) na casa de mais de 3%, além de alta inflação e uma alta na taxa de juros para tentar conter a alta da inflação. Com o impeachment da então presidente e, em seu segundo mandato, Dilma Rouseff, impeachment este que foi executado em virtude do não cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, o vice-presidente Michel Temer, com o apoio de políticas econômicas mais contracionistas e ortodoxas, de Henrique Meirelles, novo ministro da Fazenda, conseguiu reduzir a inflação de 15% ao ano para cerca de 2%, em 2018, seu último ano como presidente. A taxa de juros também caiu, de 15%, em 2016, para cerca de 6% em 2018. As políticas econômicas de Temer-Meirelles foram muito bem executadas e a pergunta que volta novamente, é: será que Lula não aprendeu com o passado?
Veja, essa não é uma questão simples de se compreender, por mais que pareça. Existe uma narrativa por trás que sustenta a atual política expansionista do governo federal. Na academia brasileira, sobretudo de Humanas e de escolas de Economia, cuja abordagem é heterodoxa, é de que o governo Dilma sofreu um golpe articulado pela direita e que, as políticas de tentativas de contração, do então ministro da Fazenda Joaquim Levy, um ortodoxo, que substituiu o Guido Mantega, em meados de 2015, foram as políticas que levaram o Brasil ao declínio econômico.
Como tentativas de sustentar seus argumentos a favor dessa falácia, diversos cientistas econômicos heterodoxos citam os EUA, na Crise de 2008, onde o FED, banco central norte-americano, imprimiu milhões de dólares para salvar os bancos da falência, além do emblemático caso japonês, onde as políticas fiscal e monetária são bastante expansionistas desde a década de 1990. O primeiro caso é bastante simples de entender, já que o FED, sob o comando de Ben Bernanke, ajudou os bancos a criarem reservas, uma vez que, com diversos calotes devido à expansão de crédito, os bancos estavam com poucas reservas e à beira da falência, ou seja, o papel moeda criado pelo FED não foi posto em circulação, mas serviu para aumentar as reservas monetárias dos bancos. O cálculo da Teoria Quantitativa da Moeda sempre leva em consideração a quantidade de moeda em circulação para a definição do impacto que isso pode ter na economia.
No caso japonês, a expansão fiscal e monetária não gerou inflação no país por dois fatores. Primeiro, por conta de uma alta poupança nacional e, também, por sua divida estar majoritariamente detida pelos próprios investidores japoneses, o que faz com que sua taxa de juros seja menor que a de outros países. O segundo ponto é que a velocidade da circulação monetária caiu drasticamente ao longo das últimas décadas no país, e um dos fatores que explicam isso é o envelhecimento da população, que vem se acentuando década após década. Com isso, houve uma queda na força de trabalho e, consequentemente, uma queda na produção, além de uma queda no consumo das famílias. Todos esses fatores juntos fazem com que o Japão tenha uma dívida superior a 200% do PIB, baixa taxa de juros, mas não sofra com altas taxas de inflação. Por vezes, inclusive, o país sofreu com a deflação, o que reflete a queda na demanda. Esses argumentos são expostos pelos heterodoxos nacionais a fim de justificar que a expansão tanto fiscal quanto monetária, mesmo em ciclos econômicos inflacionários, não tenha causado aumento geral dos preços.
Portanto, a narrativa heterodoxa brasileira de resistência às políticas contracionistas é baseada em argumentações falhas, visando a ludibriar o espectador dentro do debate público e conseguir executar suas políticas fracassadas historicamente novamente. A narrativa está posta, os espantalhos criados pelos inventores da narrativa também seguem sendo expostos, tais como o mercado financeiro nacional e a direita. Porém, quem perde, de fato, no meio dessa confusão, é o cidadão brasileiro, que vê o país com inflação acima da meta estabelecida pelo Banco Central e com risco de colapso das contas públicas em 2027. Além disso, a heterodoxia nacional se esquece de que um aumento no nível geral de preços pode, também, impactar no poder de compra do próprio governo, uma vez que, como explica o economista italiano Vito Tanzi, através de seu estudo conhecido como “Efeito Tanzi”, a alta inflação pode correr o poder de compra dos governos e, com isso, fazer com que os mesmos tenham menor capacidade de investimento, ou seja, derrubando justamente um dos principais atributos de uma política heterodoxa, que é a expansão dos gastos públicos visando ao crescimento econômico e à redução da desigualdade social.