Uma cúpula togada que golpeia nossas relações exteriores?
Recentemente, Jason Miller, conselheiro do presidente norte-americano Donald Trump, se referiu ao ministro Alexandre de Moraes como sendo a “maior ameaça à democracia no Hemisfério Ocidental”. Em que pese o ceticismo necessário à abordagem de superlativos como o contido na afirmação, são documentados os milhares de casos em que o todo-poderoso togado vem pisoteando a Constituição e as leis brasileiras para tolher indevidamente as liberdades individuais e satisfazer a seus caprichos. Talvez, porém, os danos decorrentes do arbítrio judicial não se restrinjam ao nosso plano doméstico nem resultem da atuação de um único figurão, por mais “divino” que possa se sentir o protagonista indiscutível das mordaças e prisões políticas dos últimos anos.
Em derrota imposta ao governo da Espanha, Moraes suspendeu o pedido de extradição do traficante búlgaro Vasil Vasilev, detido, entre nós, por suspeita de transporte de 52 quilos de cocaína em malas provenientes de Barcelona. Poucas horas antes da canetada alexandrina benéfica ao “carregador” de drogas, a mais alta corte da Espanha havia recusado a extradição do jornalista Oswaldo Eustáquio por ter enxergado uma indisfarçável motivação política no pedido.
Insatisfeito diante das críticas de autoridades estrangeiras à lisura de seus despachos contra Eustáquio, Moraes sustentou que a decisão dos togados espanhóis teria representado uma violação ao princípio da reciprocidade entre as nações. No habitual tom iracundo de suas canetadas, nosso censor-mor ainda determinou a intimação do governo espanhol, na pessoa de seu embaixador entre nós, para uma comprovação do “requisito da reciprocidade”, sob pena de indeferimento do pleito extraditório contra Vasil. Sob a ótica alexandrina, “reciprocidade” consistiria na devolução de um jornalista opositor como condição indispensável à entrega de um braço do narcotráfico internacional. Nova falácia de um togado que, a cada dia, supera a própria “criatividade” no terreno do arbítrio e, não satisfeito em impor seus desejos aos compatriotas vassalos, pretende fazê-lo também em relação a membros de outras nações. Porém, fora dos domínios de Moraes, os indivíduos desfrutam da liberdade de constatar o óbvio e de dar às coisas os nomes que lhes cabem.
Foi exatamente o que ocorreu com os juízes da Espanha ao se debruçarem sobre o pedido de extradição de Eustáquio. Investigado por suposta incitação aos tais “atos antidemocráticos” e alvo de dois mandados de prisão expedidos por Moraes, o jornalista protagonizou um caso típico de perseguição de agente estatal a opositor. O caráter político do assunto já transparece nas irregularidades crassas observadas no inquérito em questão, aberto de ofício, por determinação de um togado dito “vítima” de ameaças do jornalista e contra indivíduos fora de sua jurisdição. Quanto ao teor das investigações conduzidas sob a chancela de Moraes, não foram identificados quaisquer indícios da prática efetiva, por Eustáquio, de tentativa de abolição violenta do estado, da tal ameaça ou da associação criminosa para fins delitivos, como pretendeu a polícia federal brasileira. Para os togados de além-mar, não foi difícil notar que a fumaça de golpismo, levantada contra Eustáquio, se esvanecia por trás de uma realidade de críticas duras – por vezes até grosseiras! -, mas, ainda assim, legitimamente proferidas pelo jornalista contra Moraes.
Evidenciada a inexistência de delito por parte de alguém que apenas exerceu sua liberdade opinativa, os magistrados espanhóis só poderiam mesmo ter rechaçado a extradição. Note que o artigo IV, 1, f) do tratado de extradição entre Brasil e Espanha é assertivo ao vedar a medida extraditória nas hipóteses em que a “infração constituir delito político ou fato conexo”. Portanto, sendo a reciprocidade das obrigações a característica essencial de todos os contratos bilaterais (incluindo pactos entre nações), a Espanha demonstrou respeito aos termos acordados: recusou a extradição por um crime político e esperaria que o Brasil fizesse o mesmo se o país europeu viesse a pleitear a extradição de um mero opositor ideológico ao seu regime. No sinalagma perfeito dos contratos, cada parte condiciona sua prestação à contraprestação da outra, em um ambiente de passos sincronizados, onde uma parte cumpre à risca suas obrigações, de modo a que a outra também o faça. A intenção de ambas as partes de executar condutas previamente pactuadas, com vistas ao alcance de um interesse comum, é conhecida como boa fé.
Nesse recente “balé” contratual entre Brasil e Espanha, foi Moraes o responsável direto pela quebra do sincronismo, ao ter ordenado, sem fundamentação legítima, a suspensão da extradição de um traficante, tendo condicionado o seu êxito à entrega de um desafeto político. Por termos nós, na pessoa do supremo togado, violado nossa obrigação de extraditar, à Espanha, um suspeito de narcotráfico, ou seja, de crime apenado com encarceramento de mais de um ano, não poderemos, no futuro, vir a exigir que o país europeu extradite criminosos perigosos, foragidos do outro lado do Atlântico. À luz do princípio consagrado pelo direito civil, a parte que não cumpre seus deveres contratuais não pode coagir a outra a entregar a prestação prometida.
Outro desvio escandaloso contido na canetada alexandrina residiu na intimação do embaixador espanhol para a prestação de “informações” sobre o caso Eustáquio. Se o togado fosse um cumpridor aguerrido das nossas normas jurídicas, conceberia a impropriedade do ato. Afinal, tribunais se comunicam com seus congêneres de cortes estrangeiras, via cartas rogatórias, mas não com representantes diplomáticos, cujas relações com o Brasil devem ser mantidas tão somente por intermédio da presidência da república. Porém, não seria de se esperar tamanha reverência à ritualística por parte de um togado que, nos últimos anos, vem sendo movido única e exclusivamente por seus próprios ditames.
Aliás, façamos justiça a Moraes: em se tratando de extradição de meliantes, não foi ele o primeiro togado brasileiro a surpreender o país com decisões teratológicas e fomentadoras de impunidade. Nunca é demais recordar o emblemático caso Cesare Battisti, terrorista italiano condenado por quatro assassinatos em seu país de origem e que, após vagar pelo mundo à procura de refúgio, encontrou asilo em nossos trópicos, ainda nos primeiros anos lulistas. Para o alto comissariado petista, a acolhida do criminoso, dado a práticas delitivas recheadas de requintes de sadismo, atenderia a “interesses humanitários de proteção à vida”.
Diante do pedido de extradição de Battisti, formulado pela Itália, o assunto foi encaminhado ao STF, onde os togados de então decidiram pela ilegalidade do refúgio, por ter sido o comunista condenado por crimes comuns e não políticos. No entanto, no reino das “criatividades” nada institucionais, os magistrados, embora houvessem decidido extraditar Battisti, deixaram a última palavra a cargo de Lula. Ao seu dever institucional de processar e julgar extradições, conforme previsto no artigo 102, I, g) da Constituição, se permitiram, nesse caso específico, acrescentar uma “ressalva informal” no sentido de que, independentemente do teor do julgado, caberia ao presidente da República a batida definitiva do martelo. Todos nós, tristes espectadores do desenrolar de mais esse processo estapafúrdio, acompanhamos a euforia de Lula ao conceder refúgio ao “companheiro” Battisti, assim como a ascensão profissional meteórica do Dr. Barroso, então advogado do terrorista, e, pouco tempo depois, agraciado com uma suprema toga.
No Brasil permeado por desmandos de todo o gênero, togados podem usurpar funções do Executivo, como fez Moraes em relação ao embaixador espanhol; da mesma forma como podem, em sentido inverso, “criar” atribuições adicionais para a presidência da República. Tudo ao arrepio do direito posto e ao sabor de conveniências pessoais. Os casos ora comentados vêm corroborar a hipótese de que potentados avessos às liberdades individuais, no plano nacional, sejam inclinados a desrespeitar tratados internacionais e a optar pela coação das nações co-contratantes sempre que puderem fazê-lo. Desse modo, a proliferação de lideranças mundiais de índole autoritária tende a transformar o já desordenado concerto das nações em ambiente ainda mais brutal e desfavorável aos consensos. Sob essa perspectiva, vale uma reflexão mais aprofundada sobre o comentário de Jason Miller, trazido na introdução a este texto. Apenas refletir, ato que não ofende ninguém. Ou ofende?