“O mínimo sobre Liberalismo”: uma aliança entre a teoria, a História e a contextualização
Depois de seu O mínimo sobre Marx, que nunca será demais recomendar, a professora Marize Schons publicou, novamente pela editora O Mínimo, o opúsculo O mínimo sobre liberalismo. Em 124 páginas, o trabalho se acrescenta à lista de esforços bibliográficos que, por diferentes ângulos, procuram apresentar a tradição liberal ao leitor iniciante na temática.
Adquiri o livro durante o Fórum da Liberdade 2025, onde recebi generosa e imerecida dedicatória da autora, a quem muito agradeço pela gentileza. Marize principia seu esforço conceituando o liberalismo como “uma corrente de pensamento político, social e econômico que tem como princípio fundamental a valorização da liberdade individual” e que, na condição de “filosofia política normativa, defende que a autoridade e a lei devem ser justificadas racionalmente e que quaisquer limitações à liberdade precisam ser argumentadas e legitimadas” – ou seja, não podem ser arbitrárias. A agenda promovida historicamente pelos liberais, ainda conforme a professora, envolve a defesa “da igualdade jurídica, da liberdade econômica, do constitucionalismo, dos direitos civis e dos direitos políticos”.
A autora reconhece prontamente que discutir o tema precisa passar por admitir a diversidade interna ao liberalismo, admitindo-se que os autores historicamente reconhecidos como liberais manifestaram claramente divergências sobre questões como o exato papel do Estado ou as justificativas para a existência da autoridade política. É logo nessa introdução que Marize apresenta o que considero a maior originalidade da contribuição de seu livro para o público brasileiro: uma discussão mais clara sobre a metodologia de conceituação do liberalismo (e de tentativa de pontuar suas delimitações possíveis), jamais explicitada dessa forma nos demais trabalhos que costumam ser indicados à leitura dos liberais brasileiros, e nisso incluo os de minha própria lavra que discutem a mesma temática.
Haveria, conforme a indicação de Marize, três metodologias principais que poderiam ser adotadas para explicar e apresentar o liberalismo. A primeira seria a normativa, mediante a qual se pretenderia reunir um conjunto de fundamentos teóricos que demarcassem o pertencimento ou não ao liberalismo. A segunda seria uma abordagem histórica, procurando elencar os diversos acontecimentos e fenômenos concretos na História que consolidaram o liberalismo como tradição de pensamento. A terceira seria uma abordagem contextualista, focada na linguística, que se dedicaria a apreciar os diversos significados da palavra “liberal” ao longo do tempo e em diferentes contextos sociais. Como bem diz Marize, “cada uma dessas abordagens possui méritos, mas também implica custos e limitações”. Dentro das limitações, a nosso ver, e essa é também a conclusão de Marize, o melhor caminho é trabalhar em uma articulação, ainda que sempre imperfeita, entre esses três métodos.
Creio que o método normativo é necessário, pois é preciso “substantivar”, por assim dizer, de alguma forma o objeto ao qual o analista se refere para poder descrevê-lo. No entanto, uma ênfase isolada nesse método pode levar o autor a singularizar a tradição liberal inteira com base apenas em seu autor ou vertente de preferência, um problema muito comum e grave mesmo entre os divulgadores contemporâneos do liberalismo. A abordagem histórica é, a meu ver, fundamental; em meus próprios trabalhos sobre o liberalismo, sem designá-los dessa forma, procurei, como comunicador de uma ideia, associar o elemento normativo ao elemento histórico, tentando iluminá-los um ao outro para evitar as limitações que adviriam de abraçar apenas um deles. Sem o elemento normativo, o elemento histórico poderia levar a uma fragmentação, a um espargir de elementos sem coesão, em que, no fim, os acontecimentos se substituiriam plenamente ao próprio objeto cuja história se tentaria contar, tornando-se passível, nesse caso, de uma diluição contraproducente.
As diversas obras que, de alguma forma, cumprem o papel de introdução ou apresentação ao liberalismo que temos por aí em nosso país – O Que é o Liberalismo (Donald Stewart Jr.), O Liberalismo Antigo e Moderno (José Guilherme Merquior), Evolução Histórica do Liberalismo (Antonio Paim), Introdução ao Liberalismo e O Papel do Estado Segundo os Diversos Liberalismos (a primeira, sob minha organização e co-autoria, e a segunda inteiramente de minha lavra) – costumam associar, em graus variados de ênfase e, talvez, efetividade, esses dois métodos. O método linguístico acrescentado por Marize, porém, recebe dela um consistente elogio, caracterizando o liberalismo como “o conjunto de práticas que, ao longo do tempo, foram identificadas como “liberais” por aqueles que assim se autodeclararam ou foram reconhecidos como tais”. O problema é que a fragmentação do conceito analisado seria ainda maior se nos ativéssemos a esse método; um trabalho construído exclusivamente sob essa lógica, ainda que ela seja útil, se transformaria mais na história de uma palavra que do objeto que efetivamente se quer descrever. Eu acrescentaria que nem sempre a melhor maneira de compreender uma coisa é começar pelo momento em que ela recebe o nome pelo qual é conhecida, do que decorreria que estudaríamos o liberalismo sem atentar para nenhum dos nomes que, entre os séculos XVII e XVIII, estabeleceram suas balizas.
Por isso, o que Marize escolheu fazer foi um pouquinho de cada um dos três métodos. Limito-me a ressaltar alguns pontos: o capítulo 1, “Concepções liberais sobre a vida política”, é o que procura dar conta da tarefa de dispor o elemento normativo. O conceito de liberdade (bem como a tensão entre sua acepção referida por Isaiah Berlin como “positiva” e a referida como “negativa”), a relação entre o indivíduo e a razão – necessária para fundamentar a liberdade de escolha e a consequente responsabilidade do indivíduo -, a postura cética em relação ao Estado, a importância da sociedade de mercado e das trocas voluntárias, o trinômio trabalho-riqueza-propriedade e a concepção específica dos liberais sobre a igualdade (contrastando tanto a igualdade perante a lei quanto a igualdade de oportunidades valorizada por membros da vertente conhecida como liberalismo social) são os tópicos centrais da abordagem.
O capítulo 2, “O liberalismo e seu contexto histórico”, dá conta, como diz o nome, do aspecto histórico, ressaltando acontecimentos como a Revolução Gloriosa, a Revolução Francesa, a Independência dos EUA e a Revolução Industrial (outra ênfase peculiar de seu trabalho, já que não é tão destacada em outros trabalhos sobre o mesmo tema, mas aqui aparece devidamente como um fenômeno que “redefiniu as estruturas sociais, econômicas e políticas, proporcionando um ambiente propício à aplicação prática e teórica de princípios liberais”). Discute-se aí também a relação entre liberalismo e Iluminismo (Marize salienta a importância dessa relação, mas adverte que nem todas as derivações de pressupostos iluministas foram liberais), a postulação da democracia liberal e a ideia falsa de muitos militantes contemporâneos de que o liberalismo francês é inerentemente mais “revolucionário” ou pernicioso.
Finda-se o esforço no capítulo 3, intitulado “Variações intelectuais e políticas”. Marize, aqui, não evita as discussões sobre o termo “liberal” nos EUA, sobre o liberalismo social e o chamado “neoliberalismo”, sempre geradoras de tensionamentos internos à tradição liberal. Após uma conclusão bastante objetiva, Marize oferece ao leitor interessado um roteiro de estudo para aprofundamento, com um elenco de tópicos centrais para fixar a atenção, questões para revisar o que foi exposto na obra, uma seleção de textos de autores centrais da tradição liberal e as referências bibliográficas.
Mais uma vez congratulando a professora Marize por sua prodigiosa contribuição, arremato com as palavras dela: “O liberalismo, longe de ser uma doutrina homogênea e estática, permanece em constante transformação. Por essa razão, qualquer tentativa de esgotar o tema soaria pretensiosa, pois sua complexidade exige uma abordagem aberta e contínua. Assim, a reflexão sobre o liberalismo deve ser compreendida como um exercício permanente de reflexão, investigação e contextualização”.