Você realmente sabe pra que serve a lei? Bastiat tem a resposta
A obra A Lei, escrita por Frédéric Bastiat (1801–1850), constitui uma síntese vigorosa dos princípios do liberalismo clássico, especialmente no que diz respeito à relação entre o Direito, a liberdade e o papel do Estado. Publicado em 1850, poucos meses antes da morte do autor, o livro apresenta uma crítica à deturpação da lei e ao uso ilegítimo do aparato estatal para fins de espoliação legal. Esta resenha busca analisar a obra em profundidade, abordando a trajetória do autor, a estrutura e os principais argumentos do texto, bem como sua relevância no contexto contemporâneo. Também será destacada a importância da edição brasileira publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil (2010).
O autor da obra, Frédéric Bastiat, foi um economista francês, nascido em Bayonne, na região da Gasconha. Embora tenha iniciado sua carreira como comerciante e agricultor, seu interesse pela economia política o levou a estudar os clássicos do liberalismo econômico, como Adam Smith (1723-1790), Jean-Baptiste Say (1767-1832) e David Ricardo (1772-1823). Em 1844, Bastiat publica o artigo A Influência das Tarifas Francesas e Inglesas sobre o Futuro das Duas Nações, ganhando notoriedade como crítico do protecionismo. Entre 1848 e 1850, ele foi deputado na Assembleia Nacional Francesa, onde defendeu uma atuação restrita do Estado e combateu as ideias socialistas que ganhavam força na época. Além de A Lei, suas obras mais conhecidas incluem O Que Se Vê e o Que Não Se Vê1 (1850) e Sofismas Econômicos (1845). A sua morte, ocorreu em Roma aos 49 anos, deixando um legado de forte influência no pensamento liberal e libertário contemporâneo.
A França do século XIX viveu intensos processos de transformação política, econômica e social. Após a Revolução Francesa (1789)2, o país experimentou um ciclo de instabilidade que incluiu o império napoleônico, a restauração monárquica, a Revolução de Julho (1830) e, posteriormente, a Revolução de 1848, que deu origem à Segunda República Francesa (RÉMOND, 2002). Foi nesse contexto de efervescência política que Bastiat escreveu suas principais obras. A Revolução de 1848 representou um marco ao instaurar uma república com promessas de sufrágio universal masculino e diversas reformas sociais. No entanto, também abriu espaço para o fortalecimento das ideias socialistas e de uma mentalidade estatista crescente, as quais o autor denunciou como contrárias à liberdade individual. O autor participou ativamente dos debates parlamentares dessa conjuntura, posicionando-se contra essas medidas como o direito ao trabalho garantido pelo Estado, os Ateliers Nationaux (oficinas nacionais) e outras formas de intervenção pública na economia.
Sendo assim, a conjuntura política da França do século XIX foi marcada, ainda, pela influência do pensamento utópico e igualitarista, como o de Louis Blanc (1811-1882) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). A atuação de Bastiat, portanto, não se dá em um vácuo, mas sim como uma resposta intelectual e legislativa aos riscos que ele identificava na crescente interferência estatal. Seu liberalismo se estrutura, portanto, tanto em fundamentos filosóficos quanto na crítica a experiências políticas concretas da França contemporânea a ele.
A Lei é um ensaio relativamente curto, estruturado como uma argumentação direta e didática. Bastiat parte da ideia de que a lei existe para proteger os direitos naturais: vida, liberdade e propriedade. Quando o Estado ultrapassa essa função, passa a praticar a “espoliação legal” (BASTIAT, 2010, p. 14), ou seja, utiliza a legislação para tomar de uns e dar a outros, legitimando a injustiça sob a aparência de legalidade. O autor critica a influência de pensadores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), François Fénelon (1651-1715) e Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785), que defendiam uma forma de engenharia social, na qual o Estado teria a missão de moldar os cidadãos segundo algum modelo ideal. Para o economista francês, tal visão transforma a lei em um instrumento de opressão e anula a liberdade individual: “A lei deixou de ser um freio à injustiça para se tornar um agente dela” (BASTIAT, 2010, p. 24).
Ao longo do texto, Bastiat demonstra como essa espoliação ocorre por meio de subsídios, regulações, tarifas e programas sociais que redistribuem recursos sem consentimento dos proprietários originais. Ele sustenta que a verdadeira função do Estado é garantir a segurança e a liberdade e não interferir na esfera privada com intenções moralizantes ou igualitárias. O ensaio se inicia com a formulação clara de seu argumento central: “A lei é a organização do direito natural de legítima defesa; é a substituição do uso individual da força por um uso coletivo autorizado e regulado” (BASTIAT, 2010, p. 9). A partir dessa definição, ele afirma que a única função legítima da lei é proteger os direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade.
Sendo assim, o ensaio é construído em três grandes movimentos argumentativos para a fundamentação da lei na proteção dos direitos naturais: o autor discute a origem e a finalidade da lei, sustentando que ela nasce para garantir a ordem natural da liberdade e da propriedade. Nesse ponto, ele cita o conceito de justiça como o limite da ação legal. Ainda, Bastiat faz uma crítica à espoliação legal, argumentando que, quando o Estado passa a legislar para beneficiar determinados grupos, distorce a finalidade da lei e legitima a espoliação. “Quando a espoliação se generaliza sob a lei, não é mais fácil identificá-la. Todos querem participar dela, seja direta ou indiretamente” (BASTIAT, 2010, p. 21).
Outra questão importante abordada pelo autor seria a advertência contra o Estado como agente de transformação social. Bastiat vai denunciar a tentação de usar a lei para impor visões ideológicas de justiça social ou progresso. Ele critica os pensadores iluministas de seu contexto como Louis Antoine Léon de Saint-Just (1766-1794) e Maximilien de Robespierre (1758-1794), afirmando que, ao conceberem o povo como matéria a ser moldada pelo legislador, abrem espaço para o totalitarismo.
O estilo de escrita panfletária de Bastiat, com uso recorrente de perguntas retóricas e antíteses, torna o texto marcante. Um dos exemplos mais conhecidos de sua clareza argumentativa é a analogia entre a lei e o ladrão legalizado, segundo a qual o Estado pode realizar, por meio da força da lei, aquilo que seria crime se feito por um indivíduo isoladamente. No contexto atual, A Lei continua sendo uma obra relevante, sobretudo em sociedades marcadas por forte intervencionismo estatal, altos índices de carga tributária e legislações orientadas por interesses corporativos ou partidários. No caso do Brasil, onde o Estado se tornou um agente de transferência arbitrária de recursos, Fréderic Bastiat oferece uma crítica contundente: “não se trata de reformar a espoliação, mas de suprimi-la completamente” (BASTIAT, 2010, p. 28).
A obra também se conecta com os debates sobre o populismo legislativo, o aumento da dependência estatal e os riscos da judicialização política. Em todos esses casos, o economista francês nos lembra que a lei deve ser um limite ao poder e não uma ferramenta de manipulação ideológica. O autor se antecipa a debates contemporâneos sobre o papel do governo, inclusive os levantados por escolas como a Public Choice3 e por pensadores como Friedrich Hayek (1899-1992).
A edição brasileira de A Lei, publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil em 2010, cumpre um papel fundamental na disseminação do pensamento liberal em língua portuguesa. A tradutora, Adriana F. Neufeld, preserva o tom claro e irônico característico de Fredéric Bastiat, oferecendo ao leitor brasileiro um texto acessível e fiel ao original. O Instituto Mises Brasil4 tem se destacado por resgatar clássicos do liberalismo clássico e da Escola Austríaca, contribuindo para a formação intelectual de jovens interessados em economia, filosofia política e liderança. Ao disponibilizar A Lei em formato impresso e digital, a instituição possibilita o acesso democratizado a uma obra essencial para compreender os fundamentos da liberdade. A Lei é uma obra seminal para todos que
desejam compreender a natureza do Direito, os limites do poder estatal e a importância da liberdade individual. Frédéric Bastiat apresenta seus argumentos com clareza, rigor lógico e espírito pedagógico, oferecendo uma verdadeira aula de filosofia política aplicada.
Em tempos de crescimento do estatismo, de perda das referências sobre a função do Estado e de confusão entre justiça e assistencialismo, a leitura de Bastiat não apenas se justifica: torna-se urgente. Para instituições como o Instituto Liderança e Liberdade, que valorizam o empreendedorismo, a formação de lideranças e a defesa da liberdade, A Lei deve ser compreendida como um alicerce intelectual indispensável. A Lei é uma obra seminal para todos que desejam compreender a natureza do Direito, os limites do poder estatal e a importância da liberdade individual. Frédéric Bastiat apresenta seus argumentos com clareza, rigor lógico e espírito pedagógico, oferecendo uma verdadeira aula de filosofia política aplicada.
Comparativamente a obras como O Caminho da Servidão5, de Friedrich Hayek, ou A Anatomia do Estado6, de Murray Rothbard (1926-1995), o texto de Bastiat se destaca por sua concisão e clareza moral. Enquanto Hayek explora as consequências econômicas e institucionais do intervencionismo e Rothbard critica radicalmente a existência do Estado moderno, Bastiat oferece uma crítica acessível e profundamente ética da ação governamental ilegítima. Seu legado permanece atual e indispensável para todos que almejam uma sociedade livre, responsável e justa. A Lei é mais do que um ensaio político; é um chamado à consciência cívica. Que sua leitura inspire os futuros líderes a buscarem uma atuação pública fundada na justiça, na ética e na liberdade.
Notas
1 – Essa obra também conta com uma edição em Língua Portuguesa lançada no Brasil pela editora do Instituto Mises Brasil BASTIAT, Frédéric. O que se vê e o que não se vê. São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010.
2 – Sobre a análise dos movimentos revolucionários franceses no contexto do século XVIII e XIX, recomenda-se leitura dos críticos Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Edmund Burke (1729-1797).
3 – Essa Escola surgiu nos Estados Unidos a partir da década de 1950, especialmente com os trabalhos de James M. Buchanan e Gordon Tullock. Seu objetivo é aplicar a teoria econômica à análise das decisões políticas, partindo do pressuposto de que políticos, burocratas e eleitores agem de forma racional e movidos por interesses próprios. Ao rejeitar a visão idealizada do Estado como agente neutro, essa abordagem revela incentivos, falhas e comportamentos oportunistas nas instituições públicas.
4 – Fundado em novembro de 2007 em São Paulo por Hélio Coutinho Beltrão, Ubiratan Iorio de Souza e os irmãos Fernando e Cristiano Chiocca, o IMB é um think tank liberal-libertário voltado à divulgação da Escola Austríaca de Economia e dos ideais de livre mercado.
5 – HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Liberal, 2010.
6 – ROTHBARD, Murray. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2011.
Referências Bibliográficas
BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
BASTIAT, Frédéric. O que se vê e o que não se vê. São Paulo: Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2010.
MISES, Ludwig von. As Seis Lições. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009.
RÉMOND, René. O século XIX: 1815–1914 – Introdução à história de nosso tempo. 2.
ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 2002.
*Andrei Roberto da Silva é Doutorando em Sociologia e Ciência Política na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário – Católica de Santa Catarina. Professor de História da Igreja no Centro Universitário – Católica de Santa Catarina – Membro do Instituto Liderança e Liberdade de Joinville (ILL). E-mail: andreiroberto92@hotmail.com