Da escassez à inflação: a falência do dinheiro moderno

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O sistema monetário atual, desvinculado da escassez e moldado por incentivos políticos, produziu inflação persistente, déficits crescentes, aumento da desigualdade e diversas outras distorções econômicas. Por que isso ocorreu e como resolver essa grave questão? No livro Broken Money: Why Our Financial System is Failing Us and How We Can Make it Better, Lyn Alden apresenta uma análise histórica sobre a evolução do dinheiro e os problemas estruturais causados pela adoção do padrão fiat. Como sugestão para enfrentar esse cenário, Alden sustenta que o bitcoin, um ativo digital escasso e descentralizado, oferece uma alternativa viável para devolver às pessoas a soberania sobre o próprio dinheiro.

Embora o livro parta de perguntas aparentemente simples, como “o que é inflação?”, “como ela é medida?” e “por que os bancos centrais adotam metas inflacionárias?”, as respostas apresentadas por Alden estão longe de ser triviais e, em muitos momentos, chegam a ser revoltantes. É uma obra densa, mas que oferece muita clareza sobre o mundo em que vivemos.

Alden inicia o livro comentando sobre a origem do dinheiro, desde as sociedades baseadas no escambo até o uso de bens como conchas, sal e, eventualmente, metais como prata e ouro. Entendemos que não foi por acaso que esses ativos passaram a ser utilizados como meio de troca. Para que algo seja aceito como dinheiro, precisa cumprir certos critérios fundamentais: servir como reserva de valor, meio de troca e unidade de conta. O ouro, por exemplo, reúne essas propriedades – é escasso, praticamente indestrutível e facilmente divisível. Por isso, acabou se tornando a forma de dinheiro mais eficiente da história. Sem essa evolução, permaneceríamos presos ao sistema de escambo, limitados pelo problema da dupla coincidência de desejos, ou seja, a dificuldade de encontrar alguém que queira exatamente o que oferecemos e possua exatamente o que desejamos.

Alden ressalta também que o dinheiro deve ser visto como uma tecnologia e, assim sendo, pode ser superado por versões mais eficientes. As conchas substituíram o escambo, o sal tomou o lugar das conchas, o ouro superou o sal, e o dinheiro fiduciário acabou derrubando o ouro na preferência das pessoas. Porém, foi nessa última transição que surgiram muitos dos desequilíbrios econômicos que enfrentamos hoje.

Diferentemente das transformações anteriores, essa decorreu não do surgimento de um novo tipo de dinheiro, mas do avanço das telecomunicações. A possibilidade de transmitir informações na velocidade da luz estimulou ainda mais a abstração do ouro do sistema de pagamentos global. Um sistema bancário interconectado se mostrou poderoso e conveniente demais para que o ouro pudesse competir, mesmo sendo uma reserva de valor superior. A introdução dos cartões de crédito nos anos 1950, do comércio eletrônico nos anos 1990 e dos pagamentos por smartphones na década de 2010 consolidou a supremacia dos pagamentos baseados em meios digitais. Foi a única vez na história em que, em escala global, um dinheiro mais fraco teve mais adoção que outro mais forte.

Nesse novo cenário, o descompasso entre a liquidação física dos valores e a velocidade das transações tornou-se insustentável. Para resolver esse e outros problemas como as restrições que o padrão-ouro impunha à emissão de moeda, governos e bancos centrais eliminaram progressivamente a conversibilidade entre dinheiro e ouro, até que, em 1971, Richard Nixon decretou seu fim definitivo.

Essa mudança gerou consequências que, a meu ver, só agora, mais de cinquenta anos depois, começam a ser discutidas com a seriedade necessária. A partir do momento em que o dinheiro perde seu lastro em um bem escasso, os governos passam a ter a possibilidade de expandir a oferta monetária praticamente sem limites. Já não é preciso minerar ouro para criar moedas. À primeira vista, alguém leigo em economia poderia considerar isso positivo, afinal, mais dinheiro parece significar mais riqueza. Mas o que de fato eleva o padrão de vida de uma sociedade não é a quantidade de moeda e sim a capacidade de produzir bens e serviços de forma eficiente e acessível.

Além disso, o crescimento da base monetária produz distorções significativas, favorecendo principalmente os mais ricos e aqueles mais próximos da origem do novo dinheiro: governos, empresários com boas conexões políticas e executivos de grandes instituições financeiras. Os detentores de ativos reais como imóveis, ações e participações societárias são beneficiados porque, quando há mais dinheiro na economia, mas a mesma quantidade de bens, os preços aumentam. Já os que estão mais distantes da fonte de emissão monetária recebem o novo dinheiro apenas depois que ele já causou impacto inflacionário, perdendo poder de compra.

Esse fenômeno é conhecido como Efeito Cantillon e está no centro das críticas de Alden ao sistema monetário atual. Ele descreve as consequências da expansão monetária, mas, para compreender por que esse processo se perpetua, mesmo quando seus efeitos são sabidamente prejudiciais no longo prazo, é preciso analisar os incentivos políticos e institucionais que sustentam o dinheiro fiduciário.

Bruno Perini, na obra Em nome do povo: como o casamento entre estado e moeda te deixa mais pobre, ilustra com precisão o que motiva o Estado brasileiro a manter uma política inflacionária. A inflação, explica ele, funciona como fonte de recursos para o governo. Sendo o primeiro a ter acesso ao novo dinheiro, o Estado consegue utilizá-lo antes que os preços da economia reajam. “Os preços geralmente aumentam ao longo de todo o ano, mês após mês, enquanto a principal despesa do governo permanece congelada” (Perini, Em nome do povo, p. 86). Além disso, há um benefício silencioso: à medida que os preços sobem, também aumenta a arrecadação de tributos como ICMS e ISS, cobrados sobre o valor final do produto. Como boa parte das despesas públicas é reajustada apenas uma vez por ano, essa diferença temporária gera um ganho fiscal para o Estado. Quando o momento da correção chega, o ciclo recomeça.

Como resposta a essas distorções estruturais do sistema fiduciário, Alden apresenta o bitcoin como uma possível solução. Diferentemente do dólar americano ou do real, sua oferta é rigidamente limitada por código: um total de 21 milhões de unidades, cada uma divisível em até 100 milhões de satoshis. O bitcoin circula em sua própria infraestrutura, a blockchain, assim como o dólar se movimenta dentro do sistema Swift, mas com uma diferença crucial, já que se trata de uma rede descentralizada, inviolável e que permite autocustódia e privacidade. Em outras palavras, o bitcoin combina a escassez do ouro, a privacidade do dinheiro físico e a agilidade dos pagamentos digitais. Quem poupa parte de seu patrimônio em bitcoin sabe que, independentemente de quem ocupe o cargo de presidente ou de banqueiro central, seu dinheiro não será diluído por interesses políticos.

A crise do Pix, no início de 2025, reforçou algo que, muitas vezes, esquecemos: a valorização da nossa privacidade, seja nas relações pessoais, seja nas finanças. Alden observa que essa característica é frequentemente subestimada, pois grande parte da população mundial simplesmente não usufrui de privacidade em suas finanças pessoais.

“Com 160 moedas fiduciárias no mundo e mais da metade da população global vivendo sob diferentes graus de autoritarismo, esse não é um objetivo pequeno. O dinheiro de código aberto, na forma do bitcoin, pode eventualmente se tornar grande o suficiente para competir mais diretamente com o dólar americano, mas o ‘fruto mais fácil de alcançar’ no momento é que essa tecnologia oferece uma alternativa para bilhões de pessoas que utilizam moedas em colapso em países e regiões que raramente recebem atenção.” (Alden, Broken Money, p. 492)

É claro que o bitcoin ainda enfrenta desafios de curto, médio e longo prazo. Bugs podem ocorrer, concorrentes podem surgir, governos podem reagir, e a computação quântica pode representar uma ameaça futura. Ainda assim, trata-se de uma solução que até poucos anos atrás simplesmente não existia e que, se comparada a outras inovações recentes, alcançou um nível de adoção impressionante – sem marketing, sem presidente de banco central, sem CEO.

Pela primeira vez, podemos imaginar que a solução para os problemas do nosso sistema monetário venha do código e não do Estado.

Referências

Alden, Lyn. Broken Money: Why Our Financial System Is Failing Us and How We Can Make It Better. Lyn Alden Investment Strategy, 2023.

Perini, Bruno. Em Nome do Povo: Como o Casamento entre Estado e Moeda te Deixa Mais Pobre. HarperCollins Brasil, 2024.

*Pedro C. Saraiva é assessor de investimentos e associado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE).

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