A revolução do comércio livre
A Riqueza das Nações (cujo nome completo é Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações) é uma obra de 1776 que lançou as bases para o cenário econômico como conhecemos hoje (mas não sabemos por quanto tempo se as medidas tarifárias forem, de fato, levadas a cabo tanto pelos EUA quanto pela China).
Escrita pelo professor escocês de Filosofia Moral da Universidade de Glasgow, Adam Smith, o livro desafiou os princípios econômicos vigentes até então – embora suas ideias tenham acabado por favorecer os industrialistas do Império Britânico, do qual a Escócia fazia parte.
À época de sua publicação, a Europa passava por aquilo que podemos chamar de “esgotamento do absolutismo”, com reflexos tanto no sistema político (o Estado monárquico absolutista) quanto econômico (o mercantilismo) e social (o sistema de ordens, um sistema de “castas sociais” com o clero no topo da pirâmide, a nobreza como segunda ordem e todos os demais estratos sociais – de comerciantes burgueses a camponeses e artesãos – como base desse sistema).
No absolutismo, a palavra do rei era lei, não havia o conceito de votação e vontade popular como conhecemos hoje. No máximo, a influência indireta de membros da primeira e, no máximo, da segunda ordem. Aos membros da terceira ordem, cabia, grosso modo, pagar impostos e seguir as leis.
Embora a mobilidade social fosse baixa, a mobilidade econômica era ligeiramente maior durante o período absolutista: é nesse período que as monarquias (ou, “Estados-Nação”) se lançam ao mar em busca de especiarias e minerais preciosos que enriqueceriam a Coroa quando vendidos nos mercados europeus. Aqui, o papel dos comerciantes era fundamental.
Porém, a política econômica absolutista era conduzida sob a perspectiva do soma zero: se uma nação estivesse “ganhando”, outra, necessariamente, havia de estar perdendo. Era o mercantilismo, que pregava que a riqueza de uma nação era medida pela quantidade de ouro e prata que ela acumulava (o “metalismo”), e que, portanto, era dever do Estado interferir diretamente na economia para garantir superávits comerciais através do incentivo às exportações e desestímulo de importações (via tarifas, principalmente), além de promover o colonialismo como fonte de matérias-primas e mercado consumidor cativo.
As ideias de Smith em A Riqueza das Nações, nesse cenário, eram revolucionárias para seu tempo: elas rompiam com a lógica do mercantilismo ao propor que a verdadeira fonte de “riqueza de uma nação” (daí o título do livro) não estava no acúmulo de metais preciosos, mas sim na sua capacidade produtiva, especialmente na produtividade do trabalho humano. Ele argumentava que, quanto mais bens e serviços uma sociedade é capaz de produzir e trocar, mais rica ela se torna, independentemente da quantidade de ouro em seus cofres. Essa era uma ideia que contrapunha a visão de enriquecimento dos governantes (os monarcas) até então: crescimento econômico de verdade não seria na margem extensiva (o “quanto” de insumos um país tem) e sim na margem intensiva (“o que” o país faz com seus insumos).
Como pilar fundamental da capacidade produtiva com condutor do crescimento econômico, um dos conceitos centrais da obra é o da divisão do trabalho, exemplificado por Smith com o famoso caso de uma fábrica de alfinetes: ao dividir a produção em etapas especializadas (em contraposição a um empregado participar de todo o processo produtivo do alfinete), a eficiência e a produção aumentavam exponencialmente. Essa ideia formaria a base da lógica industrial capitalista que se expandiria ao longo do século XIX, até culminar com o Fordismo e o Toyotismo.
Como consequência da “descoberta” que a riqueza das nações vinha do melhor emprego dos seus fatores produtivos, vinha a ideia mais revolucionária de todas: o livre-comércio. A ideia de comércio livre era que, se cada país se especializasse naquilo que faz melhor e trocasse livremente com os demais, todos sairiam ganhando, um contraste direto com a lógica de soma zero do mercantilismo. O comércio internacional, sob essa nova ótica, não era mais uma disputa entre Estados pretensamente rivais, mas um mecanismo de cooperação espontânea entre nações interdependentes, em que cada uma seria “boa” na produção de determinado bem (lembra-se do tratado de Methuen, popularmente conhecido como “tratado dos panos e vinhos”? De certa forma, o tratado era um reconhecimento dessa especialização e interdependência).
E as ideias de liberdade de Smith em A Riqueza iam além do comércio internacional: ao criticar os monopólios concedidos pelo Estado, as guildas corporativas e o protecionismo comercial, Smith oferecia um projeto econômico liberalizante, que favorecia os interesses das classes comercial e industrial emergentes, principalmente no contexto britânico, onde as ideias do Iluminismo encontravam campo fértil com a ascensão de um novo modelo produtivo. Não por acaso, no século XIX, o Império Britânico foi uma das grandes forças mundiais a promover o comércio livre entre as nações do globo.
Sua obra foi, portanto, muito mais que uma crítica econômica; foi um marco de transição entre dois mundos: o da velha ordem absolutista para a modernidade liberal. Uma transição que, embora incompleta e repleta de contradições, ainda molda a forma como entendemos o funcionamento da economia até hoje.
*Pâmela Borges é doutoranda em Economia pelo Insper e gerente de formação do IFL-SP. Bacharel em Economia pela FEA-USP, tem experiência em pesquisa econômica por instituições como FIPE-USP, Credit Suisse e Itaú Asset Management.