“A Lei” de Bastiat como um panfleto político e apostólico

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Lei (1850), de Frédéric Bastiat, surpreende por sua radicalidade — não no sentido de uma revolução sociológica, mas por resgatar, no âmbito do discurso político-filosófico, o sentido original, fundamental e real da Lei.

Esse resgate se dá em um registro que oscila entre o panfletário e o apostólico, à medida que o autor, ao criticar a mentalidade política de seu tempo, fundamenta o conceito jusnaturalista de lei/ordem/justiça natural numa visão teológica, segundo a qual o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus.

Ao abrir o livro com a acusação “A lei pervertida!”, Bastiat inicia seu panfleto político-apostólico. Político, porque, ao longo dos capítulos, lança acusações diretas tanto às revoluções francesas desde 1789 (incapazes de cumprir suas promessas sociais) quanto às ideias do socialismo e do comunismo (a partir do cap. 20). Apostólico, porque denuncia os falsos profetas de um Estado que, em vez de proteger a verdadeira Lei natural — deduzida pelo homem a partir do dom divino do intelecto —, promove “a completa perversão da Lei” (cap. 4), tornando os cidadãos “vítimas da espoliação legalizada” (cap. 7). A acusação de apostasia política se intensifica no título do cap. 35: “Os socialistas desejam desempenhar o papel de Deus”.

Mas como Bastiat insere Deus no debate político? O Cap. 1 pavimenta essa base com um título de simplicidade brutal: “A vida é um dom de Deus”. Esse dom é apresentado com os atributos da imagem e semelhança divinas: “a vida física, intelectual e moral”. Dessa capacidade intelectual, nasce o discernimento entre o bem e o mal, matriz das regras de convívio humano, ancoradas na regra de ouro: não faças ao outro o que não queres que façam a ti — ou, de modo mais direto: não agredir e não enganar.

Dessa forma, leis humanas que, em nome da justiça, recorrem à agressão (via impostos ou ameaça de força) são ilegítimas do ponto de vista divino, por serem contrárias à natureza humana — ou seja: injustas.

Contra leis injustas, resta ao indivíduo o direito à legítima defesa — seja por meio das armas, seja pela comunicação (como faz Bastiat em tom de denúncia indignada). No Cap. 2, afirma-se que toda lei humana deve ser essencialmente “a organização coletiva do Direito individual de legítima defesa […] para fazer reinar entre todos a JUSTIÇA”. O autor não deixa dúvidas: o Estado não é Deus — e, portanto, não é a Lei. Ao Estado, cabe apenas proteger a Lei — a Lei divina, a Lei natural; não a lei positiva, criada por homens para regular a vida em sociedade. Para essa regulação, “Deus nos proveu de um conjunto de Faculdades maravilhosas” (Cap. 1). Nenhuma idolatria — seja por um ente carismático armado de força bruta ou por uma ideologia regulatória da vida comum — deve substituir a Lei e a Justiça. Isso seria criar uma ilusão de Lei: um fantasma, um espectro da verdadeira Justiça.

Dois anos antes da publicação de A Lei, Karl Marx lançava o Manifesto Comunista (1848), que começa com a célebre frase: “Um espectro ronda a Europa — o espectro do comunismo”. Em contraste direto com as ideias espectrais da modernidade revolucionária — que busca instaurar uma sociedade idealmente justa pela separação dos seres humanos em classes conflitantes —, Bastiat nos remete a diretrizes que unem (em vez de separar) os indivíduos sob um mesmo senso de justiça, autoevidente ao intelecto, como os mandamentos mosaicos: não matar, não roubar, não enganar…

Como afirma o cap. 28: “A lei é um conceito negativo”, pois “o fim da Lei é impedir a Injustiça de reinar”. Ou seja, o uso da força pelo Estado só deve ocorrer após a ação injusta — como reação a um crime — e não preventivamente, por meio de regras coercitivas de conduta. Ao aceitar a regência de leis positivadas, os grupos humanos perdem coesão e senso de responsabilidade, diz Bastiat: “Eles não precisam mais consultar uns aos outros, comparar-se, prevenir-se […] A inteligência torna-se para eles um móvel inútil; eles deixam de ser homens”.

Sem recorrer a textos sagrados ou doutrinas teológicas, mas apenas ao bom senso e ao panorama cultural da época, Frédéric Bastiat — num tempo em que os clamores por “justiça social” já ecoavam com força — recupera a ideia de Justiça como valor divino: preexistente à ação humana e evidente ao intelecto do indivíduo capaz.

Efetivamente, a lei positiva não deve deturpar a Lei natural, cuja essência é negativa — deve apenas aperfeiçoar os mecanismos que inibem as ações proibidas. É necessária vigilância contra aqueles que buscam manipular a Lei em benefício próprio ou distorcer seu espírito — simples, genuíno, acessível — como faziam os “doutores da Lei” admoestados em Mateus 15, 3.

*Juliano Gaeschlin é associado do ILL – Joinville.

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