Um convite à tradição de Dostoiévski

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A divisão entre o Dostoiévski menino e o Dostoiévski homem é indissociável de um fato marcante na vida do escritor. Em 1849, o autor foi preso pelo tsar. O motivo: aquele que seria o autor de Crime e Castigo participava na época de um grupo intelectual revolucionário conhecido como “Círculo Petrashevsky”, que fazia oposição ao regime tsarista.

Pelas críticas ao governo tsarista, Dostoiévski e seus correligionários foram condenados à morte. Todavia, um acontecimento inusitado pouparia suas vidas. Segundos antes da execução dos membros do Círculo Petrashevsky, um enviado do tsar Nicolau I chega de surpresa e anuncia a mudança de sentença. Todos foram condenados a trabalhos forçados na gélida Sibéria. É quase um consenso entre os estudiosos que tudo não passou de um teatro orquestrado pelo tsar para mostrar sua “compaixão” e seu poder.

No frio siberiano, Dostoiévski passou quatro anos em regime de trabalhos forçados. Ali, no isolamento da sociedade, mas na convivência diária com o pior do homem, ocorre uma metamorfose em seu pensamento.

Fiódor ocupa cada minuto de seu tempo observando e descrevendo o comportamento dos colegas de prisão. Tudo foi anotado. Nosso autor se deparou com a miséria humana como nunca antes vira.

Diante disso, Dostoiévski chega à conclusão de que as ideias revolucionárias não são a resolução do problema da sociedade russa, mas sim a reconciliação desta com Deus. Ou seja, a degradação humana não teria como causa o capitalismo que surgia com a eclosão da Revolução Industrial na Europa e que batia à porta da vizinha Rússia. O motivo dessa desmoralização estava no afastamento do homem russo e de Cristo.

É nesse contexto da prisão que surge o segundo livro de Dostoiévski, intitulado Memórias da Casa dos Mortos, publicado em 1862. É uma obra que deve ser lida por todo aquele que quer, de verdade, conhecer o pensamento dostoievskiano.

O regime fechado converteu Dostoiévski de revolucionário a cristão. Em uma carta para Natalya Fonvizina, em 1854, após ter saído da prisão, Dostoiévski chegou a afirmar que, “se alguém me provasse que Cristo está fora da verdade, e se a verdade realmente excluísse Cristo, eu preferiria ficar com Cristo e não com a verdade”. O enunciado expõe a convicção plena de Fiódor em Cristo – ou melhor, no Cristo professado na igreja ortodoxa russa.

Dostoiévski sai da prisão em 1854, mas ainda deve seis anos de serviços militares ao tsar. Afirmo com segurança que, sem o período preso na Sibéria, essa expressiva mudança de pensamento não ocorreria no ex-revolucionário intelectual, que gastaria o resto de sua vida tentando refutar as ideias da esquerda russa, dos propagadores das ideias revolucionárias antitsaristas.

Desconheço quem tenha defendido tanto a cultura russa como Dostoiévski. Nosso autor foi um eslavófilo ferrenho, um antiocidentalista radical. Preciso lembrar, estamos falando da cultura russa, não de uma discussão sobre economia de mercado. Não há evidências de que Fiódor tenha sido antimercado (até porque falamos aqui de uma Rússia camponesa, pouco industrializada). Pelo contrário, Fiódor desfrutou, em suas viagens, dos principais cassinos europeus, frutos da burguesia da época.

Dostoiévski era eslavófilo. Dessa eslavofilia radical, surge a rivalidade com o ocidentalista Turguêniev. Certa feita, ambos discursaram, um por vez, numa cerimônia de celebração ao poeta Púchkin (1799-1837). Turguêniev fez elogios ao maior poeta russo, mas disse que ele não estava à altura dos grandes poetas europeus, o que causou frenesi em nosso autor. Fiódor Dostoiévski subiu num porco. Surtou! Vaiou (literalmente) Turguêniev. Fez um escândalo diante de todos.

Ato contínuo, Dostoiévski sobe ao púlpito. Era a sua vez de falar de Púchkin. A plateia, ansiosa, o aguardava. Eis que Fiódor, já nos últimos meses de vida por conta do agravamento de seu enfisema, faz seu mais memorável discurso público registrado e coloca Púchkin ao lado de poetas como Goethe (1749-1832).

O público aplaudiu Dostoiévski por quase dez minutos. Alguns exclamavam que Dostoiévski era de fato um profeta. “Ele decifrou Púchkin”, diziam nos corredores. Nosso autor foi literalmente carregado. Seu discurso foi a notícia dos principais periódicos russos.

Não há na história russa moderna o registro de uma defesa da moral e da cultura russa tão genuína, tão própria, tão segura e tão bem-aceita. Dostoiévski amava Púchkin, amava a Rússia.

Os grandes intelectuais conservadores do século XX reconheceram em Dostoiévski um exemplo de defensor da tradição. De fato, Fiódor foi um conservador da moral e da cultura de seu país. Qualquer grande conservador dos últimos 120 anos concederá a Dostoiévski as maiores honrarias.

Para findar essa prosa, rememoro um fato curioso ocorrido entre Dostoiévski e Tolstói. Fiódor e Leon jamais se encontraram pessoalmente, mas, semanas depois do discurso memorável sobre Pútchkin, nosso autor teve acesso a uma carta que o autor de Guerra e Paz escreveu a Strákhov (amigo de Fiódor) em 26 de setembro de 1880.

No texto, Tolstói rasga elogios a Memórias da Casa dos Mortos. Leiamos:

“Recentemente, estava me sentindo mal e li Memórias da Casa dos Mortos. Já tinha esquecido um pouco, li-o de novo, e não conheço um livro melhor em toda a nossa nova literatura, incluindo Pútchkin. Não é o tom, mas o maravilhoso ponto de vista – genuíno, natural e cristão. Um livro esplêndido, instrutivo. Deleitei-me o dia inteiro, como não fazia havia muito tempo. Se você vir Dostoiévski, diga-lhe que o amo”. (Frank, Joseph; 2018)

Era a consagração de Dostoiévski, que esperou por esse reconhecimento durante toda a vida. No entanto – pasmem! -, nosso autor ficou extremamente aborrecido com Tolstói. Ele pergunta a Strákhov: “como, inclusive Pútchkin?”

Para Fiódor, malgrado o elogio, Tolstói cometeu um ultraje ao colocá-lo acima daquele que era o maior expoente da cultura russa (na opinião de Dostoiévski): o poeta Pútchkin. O radicalismo de Dostoiévski pela tradição russa era comovente, e, além de seus escritos, os relatos de quem conviveu com ele deixam isso claro.

Dias após o episódio com Tolstói, Dostoiévski finca uma estaca na página final de Os Irmãos Karamazov, que seria publicado dois meses depois. No romance, que para Sigmund Freud foi o maior já escrito, Dostoiévski esbanja toda sua visão antiniilista de mundo. Mas este – o niilismo segundo Dostoiévski – será tema para uma próxima prosa.

Leiam Dostoiévski e recebam um convite à tradição!

Bibliografia

Frank, Joseph, 1918-2013. Dostoiévski: um escritor em seu tempo / Joseph Fran; edição Mary Petrusewicz; tradução Pedro Maia Soares — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letra, 2018.

Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881. Memórias da Casa dos Mortos / Fiódor Dostoiévski; tradução Natália Nunes; introdução Otto Maria Carpeaux. — [2. ed] — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

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Ianker Zimmer

Ianker Zimmer

Jornalista e escritor. Autor de três livros.

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