Smart Cities e o horizonte das cidades privadas: o futuro da vida urbana
As cidades sempre foram o reflexo das tecnologias e instituições que moldaram seu tempo. A pólis grega foi construída em torno da ágora, espaço político e social; as cidades medievais floresceram ao redor de muralhas e feiras; a metrópole industrial nasceu da energia a vapor e das ferrovias; o século XX erigiu-se sobre o automóvel, a eletrificação e a lógica das avenidas largas. Agora, no século XXI, a vida urbana passa por uma transformação ainda mais radical: a cidade é atravessada por redes digitais, sensores em tempo real, inteligência artificial, big data e energia descentralizada. O resultado é o surgimento das chamadas cidades inteligentes, ou smart cities, que anunciam um novo paradigma.
Mas esse paradigma não se limita à eficiência técnica. Ele inaugura um questionamento mais profundo: se a tecnologia já é capaz de organizar e gerir a vida urbana com mais precisão e transparência do que a máquina pública, por que continuar a entregá-la exclusivamente ao monopólio do Estado? Sob essa perspectiva, as cidades inteligentes podem ser vistas não como um ponto final, mas como um estágio intermediário rumo às cidades privadas, em que a gestão urbana se torna concorrencial e o cidadão deixa de ser apenas eleitor para se tornar cliente de serviços urbanos.
Uma cidade do futuro deve ser entendida como um ecossistema integrado que alia quatro pilares: tecnologia, sustentabilidade, integração social e liberdade de escolha. Não basta instalar sensores ou aplicativos: trata-se de criar um ambiente em que transporte, energia, segurança, saúde e educação funcionem de forma coordenada, monitorada e preditiva. Ruas se comunicam com veículos, sistemas energéticos ajustam consumo conforme a demanda, dados ambientais antecipam enchentes e aplicativos permitem que o cidadão resolva suas demandas sem enfrentar filas ou burocracias. A cidade deixa de ser apenas território físico e se transforma em um software vivo, constantemente atualizado por dados e algoritmos.
No Brasil, ainda que o tema seja incipiente, experiências concretas estão em andamento. Minas Gerais se destaca com o Programa Cidades do Futuro, que já alcança cem municípios e seis milhões de habitantes. O programa conecta prefeituras, universidades e empresas para apoiar a digitalização da gestão pública, oferecendo ferramentas como o Sistema Eletrônico de Informações, que substitui processos físicos por digitais, o Invest.Gov, que apoia planos diretores com análise de dados, e o aplicativo Prefeitura na Palma da Mão, que centraliza serviços municipais. Uberlândia, participante ativa, foi reconhecida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação como cidade mais inteligente de sua região, alcançando o grau máximo de maturidade em governança digital. Outras cidades brasileiras também despontam: Florianópolis, Vitória, São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte figuram entre as dez primeiras do Ranking Connected Smart Cities 2024, que avaliou 656 municípios com mais de 50 mil habitantes em 74 indicadores que abrangem desde mobilidade até governança e inovação.
Os impactos já são mensuráveis. Estudos mostram que a digitalização de processos reduz em até 80% os custos administrativos com papel e correios, enquanto sistemas de iluminação inteligente economizam até 50% em energia. Aplicativos que centralizam serviços podem dobrar a eficiência do atendimento ao cidadão. Esses números não são promessas futuristas, mas resultados concretos, obtidos em municípios que adotaram soluções tecnológicas consistentes.
No entanto, ao mesmo tempo em que oferecem ganhos reais, as cidades inteligentes revelam os limites do modelo estatal. A implementação de tecnologia está sempre sujeita à morosidade da burocracia, à instabilidade política e aos interesses corporativos que resistem à inovação. O cidadão continua sendo tratado prioritariamente como eleitor e não como cliente que exige qualidade contínua. Isso explica por que muitas iniciativas de smart cities no Brasil ainda funcionam de forma parcial, sem alcançar todo o seu potencial transformador.
É aqui que a transição para as cidades privadas se torna inevitável. Se a eficiência urbana já foi demonstrada pela tecnologia, o próximo passo é transferir essa gestão para entes que possuem incentivos mais fortes: empresas privadas, consórcios de investidores, cooperativas urbanas. A lógica é simples: em vez de monopólio estatal, a governança urbana passa a ser concorrencial. Cidades competem por moradores, investimentos e talentos da mesma forma que empresas competem por clientes.
O mundo já ensaia diferentes modelos desse futuro. Songdo, na Coreia do Sul, foi concebida como cidade inteligente desde a fundação, com sensores em todos os serviços públicos e gestão digital integrada. Masdar City, nos Emirados Árabes, tornou-se referência em sustentabilidade, com energia renovável e mobilidade elétrica, ainda que sua expansão tenha sido mais lenta que o previsto. A Arábia Saudita aposta em Neom, um projeto monumental que pretende ser uma cidade linear de 170 km, sem carros, com transporte subterrâneo automatizado e inteligência artificial em todos os níveis. Em Singapura, o programa Smart Nation transformou o Estado em um laboratório urbano, com dados coletados em tempo real para otimizar transporte, saúde e segurança. No Canadá, o projeto Sidewalk Toronto, liderado pelo Google, foi abandonado em meio a protestos, mostrando o risco da concentração de dados em mãos privadas. Já em Ruanda, a Kigali Innovation City surge como exemplo africano de como inovação tecnológica pode reconfigurar a urbanização em países emergentes. E em Honduras, as ZEDEs (Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico) são uma experiência direta de cidades com autonomia administrativa privada.
Esses exemplos revelam tanto o potencial quanto os desafios. Enquanto Singapura mostra que é possível integrar tecnologia e governança eficiente, o caso de Toronto alerta para dilemas de privacidade e o de Masdar expõe dificuldades em financiar cidades do zero. Mas todos demonstram que a combinação entre tecnologia e novas formas de governança é irreversível.
O Brasil poderia ser pioneiro em um modelo de transição. Algumas propostas concretas seriam a criação de zonas especiais de desenvolvimento urbano, onde toda a gestão fosse concedida à iniciativa privada sob contratos de longo prazo. Outra alternativa seria estimular cidades experimentais privadas, construídas em regiões de baixo adensamento, onde investidores poderiam aplicar soluções inovadoras sem os entraves da máquina pública. Também seria viável conceder a gestão integral de bairros degradados em grandes metrópoles, como ocorreu com a revitalização de regiões portuárias em outros países, mas sob lógica de governança privada. Esses modelos serviriam como laboratórios, permitindo testar em pequena escala os princípios que poderiam guiar cidades privadas em maior escala no futuro.
A mensagem é clara: cidades inteligentes já mostraram que a tecnologia pode corrigir falhas históricas e oferecer serviços mais eficientes. Mas enquanto permanecerem no domínio exclusivo do Estado, continuarão limitadas, sujeitas a ciclos eleitorais e interesses políticos. A verdadeira cidade do futuro só será possível quando os cidadãos tiverem liberdade de escolha e quando diferentes modelos urbanos puderem competir entre si. As cidades privadas não são utopia: são o próximo estágio lógico de uma revolução que já começou.
As cidades do futuro, portanto, não serão apenas inteligentes, mas também competitivas e livres. Minas Gerais já mostra, com seu programa, que a digitalização e a integração tecnológica são caminhos possíveis. O mundo oferece exemplos de diferentes graus de ousadia, dos mais pragmáticos aos mais visionários. O próximo salto depende de abandonar a crença de que o Estado é o único guardião da vida urbana e permitir que a disciplina do mercado organize também o espaço das cidades. Só assim a verdadeira revolução urbana estará completa: tecnológica, eficiente e, sobretudo, livre.