Revolução passiva ou repressão cultural? A cultura woke no espelho de Gramsci e sob o crivo liberal

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A ascensão da cultura woke nas sociedades ocidentais representa um dos mais complexos fenômenos contemporâneos: uma reconfiguração moral que se apresenta como justiça social, mas se impõe como doutrina. O que parece uma evolução do debate público em favor das minorias e da diversidade revela-se, sob análise mais atenta, como um projeto de engenharia simbólica conduzido por elites burocráticas e intelectuais orgânicos, nos termos de Antonio Gramsci. A cultura woke não emerge de uma mobilização espontânea da sociedade civil, mas é moldada e propagada por instituições centrais — universidades, meios de comunicação, corporações e organismos estatais — que abandonaram a função de garantir o pluralismo para atuar como vetores de uma nova ortodoxia moral.

Utilizando o conceito gramsciano de revolução passiva, é possível compreender que não se trata de uma revolução popular, mas de uma reorganização hegemônica operada de cima para baixo. Em Americanismo e Fordismo, Gramsci analisa como o modelo industrial norte-americano não apenas redefiniu formas produtivas, mas também modelou a subjetividade dos indivíduos, moldando condutas, valores e visões de mundo. Tal como o fordismo disciplinava os corpos na fábrica, a cultura woke disciplina consciências nas universidades, redes sociais e ambientes corporativos. A coerção física foi substituída pela sanção moral; o chicote deu lugar ao cancelamento; a censura estatal, ao policiamento simbólico.

A analogia é clara: ambos os processos implicam conformação cultural por meio de instituições intermediárias que operam como instrumentos de domesticação social. Contudo, enquanto Gramsci via essa conformação como parte de um projeto de emancipação coletiva em direção ao socialismo, o liberalismo clássico a percebe como um risco à liberdade individual — valor máximo de qualquer ordem social aberta. Nesse ponto, a interlocução entre Gramsci e pensadores liberais como Hayek, Mises, Friedman e Tocqueville não apenas é possível, como necessária.

O que torna esse fenômeno ainda mais preocupante sob a ótica liberal é sua origem não deliberativa. Como destacam autores como Hayek em The Constitution of Liberty, sociedades livres se constroem a partir de consensos espontâneos oriundos da interação entre indivíduos autônomos. A hegemonia woke, por sua vez, é produto de engenharia moral verticalizada, sustentada por burocracias estatais, think tanks, instituições de ensino, meios de comunicação e grandes corporações que passaram a atuar como vetores de conformidade e doutrinação.

Nessas condições, o pluralismo — valor essencial do pensamento liberal — passa a ser percebido como risco e não como riqueza. A liberdade de expressão é relativizada; a autonomia moral, dissolvida em adesões obrigatórias; o mérito individual, substituído por uma hierarquia identitária. O indivíduo liberal, agente de suas escolhas, é substituído pelo sujeito categórico, cuja legitimidade advém não da conduta, mas da origem.

Gramsci entendia a hegemonia como uma construção histórica disputada entre visões de mundo. O que se vê na cultura woke é a distorção desse conceito: uma hegemonia que não emerge da experiência social compartilhada, mas é imposta como catequese por instituições que abandonaram sua vocação original de fomentar o pensamento crítico. Trata-se de um consenso forjado, não deliberado; de um poder simbólico que não emancipa, mas enquadra.

Autores liberais como Ludwig von Mises e Milton Friedman denunciaram, cada qual à sua maneira, os riscos da centralização moral institucionalizada. Em Capitalism and Freedom, Friedman afirma que qualquer projeto que vise a moldar a virtude por meios institucionais está fadado a abrir caminho para o autoritarismo. Mises, por sua vez, rejeita o coletivismo moral que transforma grupos em entidades homogêneas, anulando o indivíduo como sujeito ético. Tocqueville, em Democracy in America, advertia contra a tirania da maioria que, mesmo com intenções nobres, suprime a liberdade de consciência.

O que assistimos hoje é exatamente isso: uma moralidade deslocada do indivíduo para uma coletividade certificada, onde a virtude é medida por alinhamento retórico, não por ação consciente. O dissenso vira pecado civil, o silêncio, culpa, e a divergência, heresia. O resultado é uma cultura de vigilância simbólica, que dissolve a reflexão e inibe a autonomia.

Essa nova estrutura de poder simbólico não se limita à promoção de pautas progressistas: ela redefine os termos da própria justiça. Seu objetivo não é apenas combater desigualdades, mas controlar os critérios com os quais se pode falar sobre elas. Em vez de pluralismo, doutrina. Em vez de debate, liturgia. Em vez de liberdade, conformidade.

A cultura woke, portanto, não é apenas uma pauta progressista de costumes. É uma forma de hegemonia que, como na revolução passiva gramsciana, opera transformações profundas sem ruptura explícita, sob o verniz da evolução moral. Ao invés de liberar, submete; ao invés de pluralizar, homogeneíza; ao invés de fortalecer o indivíduo, dissolve sua autonomia em uma coletividade certificada por selos de virtude.

Ao contrário da revolução liberal, que confia na capacidade do indivíduo de discernir, escolher e conviver com o diferente, a revolução passiva woke promove enquadramentos e regulação moral. Ela é conduzida por burocratas da virtude, legitimada por estruturas institucionais que traíram a liberdade em nome da boa conduta.

Diante disso, a crítica liberal precisa ser firme. Reafirmar que a liberdade, sem adjetivos, é o fundamento último de qualquer sociedade aberta é mais do que uma postura intelectual, é um imperativo moral. Isso inclui o direito de errar, de discordar, de pensar fora dos manuais da virtude oficial. Conduzida por burocratas da virtude e legitimada por estruturas institucionais que traíram a liberdade em nome da boa conduta, a revolução woke tenta suprimir o dissenso, padronizar a consciência e neutralizar o debate. O pensamento liberal, no entanto, não precisa de hegemonia: ele vive no dissenso, floresce na diversidade e se sustenta no conflito honesto entre visões de mundo. É exatamente por isso que a cultura woke precisa ser confrontada — não com ressentimento, mas com coragem, clareza e coerência.

A cultura woke, portanto, deve ser compreendida não como simples expressão cultural de vanguarda, mas como um processo estruturado de imposição hegemônica, moldado por dinâmicas institucionais que ecoam o conceito gramsciano de revolução passiva. A analogia é reveladora: uma mudança operada sem ruptura, sob o verniz do progresso, mas que redefine profundamente os contornos da vida social, intelectual e moral. O desafio não é apenas reconhecer os mecanismos dessa nova ortodoxia, mas resistir à sua pretensão de totalidade. Isso exige uma postura crítica permanente, que não se submeta à lógica binária da adesão ou do silenciamento, mas que reivindique o espaço do pensamento autônomo e do dissenso construtivo. Ao fim, talvez o maior ensinamento de Gramsci às sociedades contemporâneas não seja o de como se constrói hegemonia, mas o de como identificá-la quando ela se disfarça de consciência coletiva.

* João Loyola é Associado do IFL-BH.

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