Revisitando Merquior: uma defesa do neoliberalismo

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Antes de iniciar o artigo, gostaria de deixar claro que não há aqui nenhuma intenção de rebaixar, menosprezar ou atacar a figura do brilhante José Guilherme Merquior. Ao contrário, considero Merquior um patrimônio intelectual do liberalismo brasileiro, cuja obra merece ser preservada, defendida e debatida por todos aqueles que se identificam com essa tradição.

Merquior foi frequentador do Instituto Liberal – instituto que, ontem e hoje, tem desempenhado um papel central na difusão das ideias liberais e que também orienta a minha trajetória de estudos nesse campo. Neste artigo, proponho analisar e argumentar contra suas críticas aos liberais clássicos – que ele denomina de neoliberais, como Hayek, Friedman e Buchanan.

Em sua obra Liberalismo Antigo e Moderno, Merquior classifica os cem anos entre a Revolução Gloriosa (1688) e a Revolução Francesa (1789) como o período do protoliberalismo. Esse estágio, segundo ele, estaria associado ao sistema inglês, caracterizado por uma forma de governo fundada em poder monárquico limitado e por um grau relativamente elevado de liberdade civil. Apesar de o acesso ao poder estar restrito a uma oligarquia e persistirem poderes arbitrários, a sociedade inglesa desfrutava de mais liberdade do que qualquer outra parte da Europa (MERQUIOR, 2014, p. 41).

Nesse contexto, os protoliberais defendiam uma posição em que o governo deveria atuar de modo estritamente limitado, zelando basicamente pela paz e pela segurança externa e interna. O liberalismo, portanto, nascia como um protesto contra os excessos do poder estatal. Por isso, os protoliberais buscavam instituir tanto um limite quanto uma divisão do poder (Ibid., p. 42).

O surgimento do paleoliberalismo, afirma Merquior, veio com a inserção da ideia de participação pública no poder. Isso é uma adição à proteção da liberdade civil. Benjamin Constant e Herbert Spencer são citados como expoentes desse paleoliberalismo (MERQUIOR, 2020, p. 80).

O social-liberalismo surge mesmo antes da derrocada do paleoliberalismo, agregando os conceitos que viriam a ser conhecidos como liberdade positiva e negativa. A liberdade negativa é a ausência de coerção. Já a liberdade positiva é a capacidade ou oportunidade de conseguir o que se deseja.

O argumento sustentado era de que a coerção estatal não era a única barreira à liberdade, mas que as barreiras econômicas e sociais também impediam o desenvolvimento individual e, por isso, tornavam legítima a ação estatal para derrubá-las. Os símbolos dessa época social-liberal são John Stuart Mill e John Maynard Keynes (MERQUIOR, 2020, p. 91).

Para Merquior, a principal figura do liberalismo de esquerda não era nem Dewey nem Kelsen, mas Keynes. Isso porque Keynes combinava eficiência econômica, justiça social e liberdade individual para resolver o problema político da humanidade (MERQUIOR, 2014, p. 210).

Após a vitória do consenso keynesiano, a terceira fase da ideologia liberal é denominada por Merquior como antikeynesianismo – ou neoliberalismo. Suas maiores expressões são Hayek, Friedman e Buchanan (2020, cap. 5). Nota: diferentemente dos detratores do liberalismo, Merquior não utiliza o termo neoliberal com forma perjorativa. É um conceito analítico.

Segundo o autor, as figuras neoliberais buscavam recriar o liberismo – doutrina que faz a defesa exclusiva da liberdade econômica. Merquior usa Croce para salientar que, “enquanto o liberalismo é um princípio ético, o liberismo não passa de um preceito econômico que, tomado equivocadamente por uma ética liberal, degrada o liberalismo a um baixo hedonismo utilitário”.

Merquior via essa nova fase do liberalismo de forma negativa, pois entendia que havia um componente perigoso no seu “gene”: a estadofobia. Para ele, o liberalismo era antiestatista por natureza, uma vez que limitava o poder do Estado; já a estadofobia consistia em uma aversão ou hostilidade exagerada contra o Estado (INSTITUTO LIBERAL, 2023).

Ele acreditava que os liberais sociais ocupavam uma posição moral superior aos neoliberais, não apenas por se preocuparem com a liberdade positiva dos indivíduos, mas também porque entendia que, até a fase do liberalismo social, o liberalismo, como ideologia, havia passado por um processo de evolução. Nesse sentido, o neoliberalismo representava um retrocesso.

Isso pode ser entendido no decorrer da leitura da obra, mas também evidenciado quando, por exemplo, ele afirma que “o revisionismo econômico de Keynes brotava de algo mais amplo que considerações econômicas e políticas: era profundamente vinculado a uma revolução moral” (MERQUIOR, 2014, p. 211); ou “o neoliberalismo é, portanto, essencialmente, a reprise do paleoliberalismo; e, como verificamos as deficiências deste último em matéria de visão histórica e consciência social, parece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, uma retomada criadora do social-liberalismo” (MERQUIOR, 2020, p. 85).

A leitura de Merquior sobre o neoliberalismo pode ser considerada, no mínimo, injusta. Embora acuse os autores neoliberais de reduzirem o liberalismo à mera defesa da liberdade econômica, o autor desconsidera o contexto político e intelectual em que esses pensadores estavam inseridos.

Primeiro, porque as instituições liberais – a democracia, o Estado e, principalmente, a economia de mercado – estavam sendo questionadas. Segundo, porque Merquior, apoiado em seu liberalismo moral, centrado em intenções, ignora os resultados – já reconhecidos a partir das décadas de 1960 e 1970 – catastróficos inspirados nas ideias de Keynes. Terceiro, porque, nos debates da época, existia uma descrença na força da liberdade econômica e um forte discurso a favor do igualitarismo, do dirigismo econômico e da redistribuição.

A preocupação dos liberais citados por Merquior era proteger a liberdade negativa e econômica da sociedade e viabilizar o Estado contemporâneo, que ficou responsável por assegurar serviços e direitos. Friedman, por exemplo, de fato não corria o risco de ser estadófobo, como Merquior alertava. O que o tornava um antiestatista era a percepção de que meios ruins eram frequentemente empregados para alcançar bons objetivos. O “chicaguista” estava preocupado não apenas com a liberdade negativa, mas também com a maneira pela qual o Estado poderia ampliar a liberdade positiva sem recorrer à coerção.

Suas críticas aos diversos setores em que o Estado assumiu o dever de prover à sociedade não derivam de uma postura estadófoba, mas de argumentos baseados na ineficiência e nos resultados negativos produzidos pelo uso da coerção. O exemplo mais emblemático é o sistema de vouchers defendido por Friedman. Para ele, o Estado poderia ampliar a liberdade positiva ao financiar a educação, desde que preservasse a liberdade de escolha do indivíduo sobre qual escola frequentar em vez de impor onde o estudante deveria estudar apenas porque patrocinava aquela atividade.

Não se trata de mero economicismo ou de um liberismo: Friedman defende essa posição porque acreditava que essa era uma forma de empoderar as famílias e os indivíduos, além de entender que o burocrata não sabe o que é melhor para o indivíduo do que ele próprio. Friedman se queixava de que, mesmo os pais arcando indiretamente com os custos da educação dos seus filhos, o poder estava centralizado nas mãos de educadores profissionais (FRIEDMAN, 2015, p. 225). Esses profissionais afirmavam lutar pelo interesse público, mas, na realidade, preocupavam-se sobretudo com a estabilidade de seus empregos e com o controle dos salários, especialmente se o governo – e não os pais – fosse o pagador (Ibid., p. 227).

A visão dos neoliberais não está ligada somente ao economicismo, mas também ao institucionalismo. A diferença é que eles eram extremamente preocupados em pesar os custos e benefícios e saber quem é que arcaria com os custos. Além disso, os neoliberais entendem que a liberdade negativa constitui um componente endógeno essencial para a expansão da liberdade positiva.

No caso de Buchanan — líder da Escola da Escolha Pública —, ele destaca logo no início de sua obra Democracy in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes o problema que surgiu a partir do momento em que o Estado passou a se comportar como um provedor de serviços e um financiador de benefícios:

“O que Keynes produziu?
No ano de 1776, da Declaração de Independência Americana, Adam Smith observou que ‘o que é prudência na conduta de cada família privada dificilmente pode ser insensatez na de um grande reino.’ Até a chegada da ‘revolução keynesiana’ nos anos centrais do século XX, a conduta fiscal da República Americana era orientada por esse princípio smithiano de responsabilidade fiscal: o governo não deveria gastar sem impor tributos; e o governo não deveria colocar as gerações futuras em cativeiro por meio do financiamento deficitário de despesas públicas destinadas a proporcionar benefícios temporários e efêmeros.” (BUCHANAN, 2000, p. 3).

Buchanan nos conta que, antes das ideias de Keynes, a política fiscal era orientada pela austeridade. Apesar do fato de que o orçamento pré-keynesiano não fosse extremamente equilibrado e linear, ainda assim era balanceado (BUCHANAN, 2000, p. 13).

As preocupações de Keynes, calcadas em boas intenções voltadas a ampliar a liberdade positiva dos indivíduos, não foram suficientes para garantir um resultado eficiente. Graças às ideias de Keynes, o Estado ganhou a confiança, principalmente dos intelectuais, de que poderia guiar a economia rumo ao progresso melhor do que a iniciativa privada.

Para Hayek, Friedman e Buchanan, a liberdade econômica tinha sido e continuaria sendo o meio mais importante e eficiente de promover a liberdade positiva. Graças ao crescimento econômico gerado pela liberdade econômica, cultural e científica, um indivíduo das nações ocidentais desfruta de muito mais liberdade positiva do que um rei medieval. Esse crescimento não aconteceu porque o governo criou redes de segurança social ou garantiu, através da lei, que indivíduos teriam direito a maior liberdade positiva.

Embora Hayek, Friedman e Buchanan compartilhassem a defesa da liberdade econômica como instrumento essencial para a expansão da liberdade positiva, suas justificativas partiam de fundamentos distintos. Friedman enfatizava a eficiência dos mercados e os limites práticos da intervenção estatal, com ênfase na proteção da liberdade negativa; Buchanan abordava o problema sob a ótica das instituições políticas e dos incentivos que existem no setor público. Já Hayek partia do falibilismo e do conhecimento disperso.

Dizer que Hayek não se preocupava com o social é errado. Hayek inclusive advogava por uma renda mínima para os mais necessitados (HAYEK, 1976). Sua oposição era contra as restrições impostas à liberdade negativa e econômica e contra a ordem planejada em vez da ordem espontânea.

Ele era, na verdade, contrário à ideia de justiça social: (1) porque esse conceito não tem significado nenhum no mundo real; (2) porque as ações políticas baseadas em justiça social minariam a própria liberdade e o progresso (HAYEK, 1976, p. 83); e (3) porque a justiça social só faria sentido em uma sociedade centralmente dirigida (Ibid., p. 84).

A diversidade humana é a base da defesa hayekiana da descentralização e da liberdade. Centralizar as decisões políticas não gera harmonia, mas sim conflitos, pois Hayek compreendia que as pessoas deveriam concordar apenas sobre as regras gerais e não sobre quais devem ser os objetivos finais da vida em sociedade.

Dessa forma, torna-se possível compreender a diferença entre as concepções de liberdade em Hayek e Merquior: para Merquior, a liberdade é um fim em si mesmo; para Hayek, os indivíduos buscam a liberdade como meio para alcançar fins distintos, definidos autonomamente por cada pessoa. Nota: a discussão filosófica entre liberdade como fim em si mesma ou como instrumento individual não é o objetivo deste artigo.

Conclusão

O texto procurou demonstrar que o equívoco de Merquior ao julgar os neoliberais está em interpretar a defesa econômica como um componente secundário ou menos moral do liberalismo. A crítica merquioriana ignora o contexto de um mundo em que o Estado, legitimado pelas ideias keynesianas, havia ameaçado a própria base da liberdade que o liberalismo pretendeu proteger. Assim, não houve um gesto de estadofobia, mas sim uma tentativa de restaurar o equilíbrio entre Estado e indivíduo.

Os neoliberais não rejeitavam a liberdade positiva; apenas enxergavam que boas intenções não significavam bons resultados. Mantinham um ceticismo quanto à real capacidade do Estado interventor, ainda que movido por propósitos nobres de ampliar a liberdade positiva.

A agenda política dos neoliberais era tentar viabilizar fiscalmente esse Estado contemporâneo, assegurar a liberdade negativa e defender um Estado social atenuado, capaz de atuar em algumas áreas, mas não de forma centralizadora.

A crítica dos neoliberais era focada no entendimento de que esse Estado contemporâneo não só limita, mas prejudica o progresso cultural, econômico e social dos indivíduos. É, no fim, uma oposição ao capitalismo de Estado e à justiça social como amplificadora da liberdade positiva, que, sob aparência de virtude, pode se converter em instrumento de coerção.

Referências

MERQUIOR, José Guilherme. Liberalismo Antigo e Moderno. São Paulo: É Realizações, 2014.

MERQUIOR, José Guilherme. O Argumento Liberal. São Paulo: É Realizações, 2020.

INSTITUTO LIBERAL. José Guilherme Merquior — Liberalismo Antigo e Moderno. [recurso eletrônico]. YouTube, 2023. Disponível em: Youtube . Acesso em: 1 out. 2025.

BUCHANAN, James M.; WAGNER, Richard E. Democracy in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes. Indianapolis: Liberty Fund, 2000.

FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Livre para Escolher. Rio de Janeiro: Record, 2015.

FRIEDMAN, Milton. Why Government Is the Problem. Stanford: Hoover Institution Press, 1993. (Essays in Public Policy, v. 39.)

HAYEK, Friedrich A. von. Direito, legislação e liberdade II: os equívocos das políticas de justiça social. São Paulo: Avis Rara, 2023.. Acesso em: 1 out. 2025.

HAYEK, Friedrich A. O Caminho da Servidão. 2. ed. São Paulo: LVM Editora, 2022.

Este artigo foi originalmente publicado neste link. 

*Adriano Dorta é estudante de Economia, com foco de pesquisa em Escolha Pública e Economia Política.

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