O voto deveria ser universal? A tensão entre autonomia política e dependência do Estado

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O princípio do sufrágio universal é frequentemente exaltado como uma conquista civilizatória irreversível, símbolo da igualdade cidadã e do ideal democrático moderno. No entanto, como toda estrutura política, esse princípio também está sujeito a questionamentos racionais, especialmente quando a prática do voto se entrelaça com a dependência financeira do Estado. A democracia não é apenas o direito de escolher; é, antes de tudo, a capacidade de escolher com autonomia. Quando uma parcela significativa do eleitorado tem uma parte substancial de sua renda vinculada ao poder público, a liberdade de escolha política corre o risco de se transformar em submissão econômica.

A premissa da cidadania política repousa sobre a autonomia moral do indivíduo. Para que o voto seja legítimo como instrumento de deliberação coletiva sobre o bem comum, é necessário que o eleitor esteja, ao menos em parte, livre das pressões materiais que distorcem seu julgamento. Aquele que depende do Estado para sobreviver vota não pelo futuro do país, mas pela manutenção de sua renda imediata. Seu voto é condicionado, não deliberativo. Nesse contexto, a escolha política perde seu caráter cívico e se converte em mecanismo de preservação de benefícios. A democracia degenera em um plebiscito permanente de distribuição de recursos, e o bem comum cede lugar à soma de interesses privados sustentados pelo erário.

Essa crítica foi esboçada, com diferentes graus de sofisticação, por autores liberais e conservadores ao longo dos séculos. Já no século XIX, Alexis de Tocqueville advertia para o risco daquilo que chamou de “despotismo suave”, em que o Estado, ao cuidar de todos os aspectos da vida dos indivíduos, os infantiliza e os torna incapazes de exercer plenamente sua liberdade. Em termos mais contemporâneos, pensadores da escola austríaca como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek demonstraram como a expansão da assistência estatal inevitavelmente cria incentivos para a formação de grupos de pressão que buscam perpetuar suas vantagens, mesmo à custa do restante da sociedade. Também Robert Nozick, em Anarquia, Estado e Utopia, alertava para o fato de que qualquer redistribuição coercitiva feita pelo Estado, mesmo em nome da justiça social, viola os direitos individuais e transforma o processo político em uma engrenagem de espoliação sistemática, onde o voto passa a ser uma ferramenta de legitimação da captura do alheio.

No Brasil, esse dilema assume contornos dramáticos. O sistema eleitoral é compulsório, e o voto, universal. Ao mesmo tempo, o Estado é responsável direto por financiar uma vasta rede de transferências de renda, benefícios assistenciais e subsídios cruzados. O cidadão, em muitos casos, é simultaneamente eleitor e beneficiário, demandante e dependente. Nesse cenário, o vínculo entre o indivíduo e o Estado não é mais mediado pela liberdade e pela responsabilidade, mas pela lealdade forçada. O voto torna-se não uma expressão de preferência racional sobre o destino da nação, mas um gesto de gratidão interessada ou de temor quanto à perda de algum benefício.

É necessário, no entanto, estabelecer uma distinção conceitual relevante entre assistência emergencial e dependência estrutural. A primeira pode ser justificada moral e economicamente como medida temporária diante de crises agudas ou choques sociais, auxiliando o indivíduo na transição produtiva. Já a segunda, estruturada como um mecanismo permanente e sem contrapartidas, visa a consolidar uma base eleitoral passiva e sujeita ao controle político. A assistência genuína promove cidadania. A dependência programada fabrica eleitores cativos. Quando o assistencialismo se institucionaliza, ele deixa de ser uma política social e se torna estratégia eleitoral.

A consequência institucional disso é a perversão da representação política. Políticos deixam de ser avaliados pela capacidade de promover reformas ou garantir estabilidade econômica e passam a ser recompensados por sua eficácia na manutenção e ampliação de repasses, cotas e assistências. O sistema político é capturado por uma lógica redistributiva em que o mérito, a produtividade e o equilíbrio fiscal são secundarizados em nome de um populismo orçamentário que sustenta, com dinheiro alheio, o apoio de massas cada vez mais dependentes. Como afirmou Bastiat, o Estado se converte na ficção pela qual todos tentam viver às custas de todos.

Esse arranjo gera um claro conflito de agência entre os contribuintes que sustentam a máquina estatal e os beneficiários diretos, que, mesmo sem arcar com os custos, participam das decisões sobre a ampliação dos gastos públicos. O problema não reside em ajudar os mais pobres, mas em permitir que decisões fiscais sejam determinadas majoritariamente por quem não assume, direta ou indiretamente, o ônus das escolhas políticas. Essa assimetria compromete os incentivos democráticos corretos e perpetua uma cultura de transferência em detrimento da responsabilidade individual e da liberdade de escolha econômica. Os que financiam o Estado perdem influência política, enquanto os que dependem dele ampliam seu poder de veto contra reformas estruturantes.

Essa realidade conduz a uma reflexão desconfortável, porém necessária: o voto universal, sob certas circunstâncias, pode minar o próprio ideal de bem público que ele pretende preservar. Isso não significa, é claro, defender a exclusão sumária de segmentos da população. Trata-se de pensar em critérios mínimos de responsabilidade cívica para o exercício do voto, como o cumprimento de deveres básicos, o afastamento de vínculos econômicos diretos e contínuos com o Estado ou, ao menos, a educação política suficiente para entender as consequências de uma escolha eleitoral.

O sufrágio não deve ser confundido com um direito automático, mas entendido como uma prerrogativa decorrente da capacidade de julgar com independência. Se um indivíduo está integralmente dependente do Estado para sobreviver, sua autonomia está objetivamente comprometida. Permitir que ele participe, em igualdade formal com quem sustenta o sistema via impostos, das decisões que definem o tamanho, o custo e a direção do próprio Estado, gera um desequilíbrio moral e fiscal insanável. É como conceder a sócios descompromissados o mesmo poder de voto que os investidores que arriscam seu capital em uma empresa: a médio prazo, a falência é inevitável.

Essa crítica não é uma defesa da exclusão social, mas um apelo por responsabilidade política. O que se propõe não é que pobres não votem, mas que o voto não seja usado como mecanismo de perpetuação da pobreza via dependência institucionalizada. O eleitor deve ser estimulado à emancipação e não à fidelidade ao benfeitor estatal. A democracia deve premiar a autonomia, não a dependência. A igualdade formal no ato de votar precisa estar acompanhada de responsabilidade material sobre as consequências do voto.

Diante desse cenário, é necessário pensar em saídas institucionais que protejam o ideal democrático da degeneração assistencialista. Entre elas, o fim do voto obrigatório aparece como um passo importante: o voto facultativo reduz o clientelismo forçado e incentiva a deliberação consciente. A educação política básica deveria ser pré-requisito para o exercício pleno do voto, como defende Jason Brennan, para que a escolha seja informada e não induzida. Mais ainda, a política social deve ser reorganizada com foco na emancipação econômica e na transição produtiva. A cidadania ativa não nasce do benefício contínuo, mas da liberdade conquistada.

Em uma sociedade verdadeiramente livre, o Estado deve ser mínimo; a assistência, pontual e temporária; e o voto, um ato de responsabilidade, não de medo ou conveniência. Qualquer sistema em que o governo redistribui para comprar lealdades é estruturalmente incompatível com a liberdade. O voto universal, nessas condições, transforma-se em voto estatal — um ciclo vicioso onde o cidadão deixa de ser soberano para se tornar súdito do orçamento.

O ideal democrático não exige apenas que todos votem. Exige que todos sejam livres o suficiente para votar com consciência, responsabilidade e desprendimento. Se o Estado é pai, provedor e juiz, não há liberdade, e, sem liberdade, não há democracia — há apenas um teatro de escolhas onde o script já foi escrito pelos que pagam a conta e não conseguem mais escolher sequer como serão espoliados.

*João Loyola é formado em administração pela PUC Minas e em Gestão de Seguros pela ENS, Pós-Graduado em Gestão Estratégia de Seguros pela ENS, é sócio sucessor da Atualiza Seguros, trabalha no programa Minas Livre para Crescer na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de MG e é associado do IFL-BH.

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