O presente artigo discute as implicações em torno da relação entre o que os estados têm chamado de interesse nacional, a soberania do consumidor, a incerteza econômica e a inflação dentro do atual contexto de guerras comerciais que são travadas no âmbito das disputas geopolíticas e geoeconômicas entre a China, os Estados Unidos e o restante dos aliados deste último. Para pensar sobre isso, analisaremos sumariamente como o conceito político de interesse nacional tem sido amplamente utilizado para justificar as citadas beligerâncias comerciais, ainda mais quando a utilização desse conceito abstrato e multifuncional tem respondido às disputas de poder entre uma potência emergente como a China e os Estados Unidos como poder global que tenta preservar sua posição nos principais cenários internacionais.
Antecedentes históricos e origens do conceito de interesse nacional
É em Tucídides que se encontra documentalmente a menção mais remota do conceito de “interesse nacional”. A esse respeito, ele afirmava que “uma identidade de interesse é o mais seguro dos laços entre Estados ou indivíduos” [1]. Seguindo essa linha de raciocínio, o citado autor visualizava o interesse nacional como um conjunto de interesses superiores e essenciais, vitais para a sobrevivência de uma sociedade.
Nicolás Maquiavel foi outro dos precursores, não menos relevante e influente sobre a conceituação do que hoje se entende como “interesse nacional” e cujas reflexões foram além do século XVI, em que foram originalmente formuladas. A esse respeito, Maquiavel sustentou que a sobrevivência do Estado tinha que ser a principal preocupação e tarefa dos governantes, tornando-se um fim em si mesma e assinalando que, para alcançar essa meta, os meios eram menos importantes que o fim, colocando assim a “razão de Estado” como um bem valioso e a unidade de organização política como um imperativo moral que não pode ser julgado de acordo com os critérios usados para avaliar a conduta individual dos homens.
Da mesma forma, é relevante destacar que, para Maquiavel, o papel do Estado é apontado como essencial, não só em relação ao futuro conceito de interesse nacional, mas como um ator a mais na política internacional e na organização e governo da sociedade internacional. É importante, diante do atual cenário, sublinhar essa visão do papel do Estado na cena mundial, pois tem sido a própria razão de Estado uma das principais justificativas utilizadas no delineamento das atuais políticas comerciais que as nações imersas nas guerras comerciais em curso, em especial a China e os Estados Unidos, levam a cabo. Os consumidores e agentes econômicos têm tido um papel praticamente inexistente como atores não estatais frente à preponderância de seus respectivos Estados.
Outro pensador que contribuiu de forma clara para o conceito de interesse nacional foi o filósofo Jean-Jacques Rousseau, através de seu conceito de “vontade geral”, o qual se sustentou sobre a suposição de que uma comunidade política na qual existem interesses díspares pode falar através de uma voz comum. Rousseau sustentou que: “Só a vontade geral pode dirigir os poderes do Estado de tal forma que o propósito para o qual foi instituído, que não é outro senão o bem comum, possa ser alcançado”
Diferentemente da concepção de Maquiavel antes exposta, que dá uma preponderância ao Estado como o principal ator na execução do interesse nacional, a de Rousseau enfatiza o conceito de vontade geral como o motor dos poderes do Estado em função do interesse nacional como expressão do bem comum de uma sociedade. A ideia do bem comum manejada por Rousseau era contrária aos interesses individuais, em especial aos interesses chamados por ele de partidários. A esse respeito, ele sustentou que, “quando os interesses individuais se fazem sentir ou grupos bem determinados e reduzidos influenciam a ação do Estado, então o interesse comum sofrerá uma mudança para pior”
Nas ideias de Rousseau, ao identificar a nação com o povo, começa-se a apreciar a concepção de “soberania”, à qual posteriormente se somou o adjetivo “popular”, como consequência da Revolução Francesa. Com esta, tal como muitos historiadores assinalam, ingressou-se na Era Moderna, na qual o Estado se generalizou e, como sequela disso, a ideia de interesse nacional nasceu.
A concepção de interesse nacional e as teorias políticas contemporâneas
O realismo político
Os enfoques do realismo e do neorrealismo político têm sido as principais correntes que desenvolveram o conceito de interesse nacional contemporâneo. Para Hans Morgenthau, um dos principais expoentes do realismo, o interesse nacional é a bússola que deve guiar os governantes e a fonte de legitimidade da política externa dos Estados. Portanto, para Morgenthau, o interesse nacional de uma nação só pode ser definido em termos de sobrevivência e poder.
O realismo político sustenta que a política externa e a diplomacia das nações devem ter como objetivo principal a promoção, defesa e consecução dos interesses nacionais de cada uma, em um cenário de anarquia, no qual os Estados dependem apenas deles para garantir sua segurança. Esse enfoque exclui em primeira ordem a preocupação por outros assuntos da sociedade internacional e, em segundo, afasta a ação dos Estados de ideais internacionalistas e processos de integração supranacionais. Portanto, os Estados devem atuar de forma autônoma, sem se deixar influenciar por estruturas alheias ao próprio Estado, sendo este o único garantidor de sua proteção, segurança e sobrevivência. Essa concepção tem certas semelhanças com o atual cenário de guerras comerciais.
O neorrealismo
Diferentemente do realismo, para o neorrealismo, cujo principal referente é Kenneth Waltz, o interesse nacional é um fator de grande relevância (não o único), que deriva do sistema internacional, o qual se converte na luta pela sobrevivência dos Estados, em um habitát de operações anárquico, onde não há jurisdição supranacional que regule de forma efetiva as relações entre os Estados. Para Waltz, a necessidade de segurança é o que leva os Estados à acumulação de poder, dando assim uma explicação mais elaborada do fator “poder” nas relações internacionais.
Essas duas concepções contemporâneas do que se tem entendido como o interesse nacional são as que mais se aproximam e explicam a realidade e o leitmotiv dos fatores e interesses que desencadearam as guerras comerciais com fundos geopolíticos e geoeconômicos na atualidade em escala global, em menor e maior grau.
A soberania do consumidor
Conceitos
A concepção de soberania do consumidor tem sido utilizada para fazer referência ao papel que as preferências dos consumidores desempenham na alocação dos recursos de uma economia. Primariamente, é atribuída a William Hutt em duas de suas publicações. Não obstante, seus antecedentes remontam a Adam Smith em sua clássica obra A Riqueza das Nações, que asseverava que “o consumo é o único fim e propósito de toda a produção e o bem-estar do produtor deveria ser considerado apenas na medida em que seja necessário para atender ao do consumidor”
A concepção da soberania do consumidor proposta por Hutt segue as diretrizes de Adam Smith no que se refere ao papel da produção, pois, para Hutt, a produção é um meio para alcançar um fim, e, nesse sentido, a atividade de produção está subordinada à disciplina de mercado ditada pela concorrência e pelas preferências dos consumidores, que são os que, em última instância, definem a participação e a estrutura da oferta de bens e serviços através de suas decisões soberanas.
O conceito de soberania do consumidor na Escola Austríaca
Para a Escola Austríaca de Economia, a soberania do consumidor se sustenta na ideia de que os consumidores, através de suas decisões de compra em um mercado livre, são os que determinam o que e quanto se produz. Um dos fundamentos mais relevantes desse conceito é o da teoria do valor subjetivo, contribuição de Ludwig von Mises, a qual afirma que o valor de um bem ou serviço não é intrínseco em si mesmo, mas que depende da utilidade e da apreciação que cada indivíduo lhe outorga. Esse valor pode mudar segundo as condições, como a escassez, as necessidades do momento, as preferências ou gostos dos indivíduos, em função da utilidade que os bens proporcionam individualmente a cada pessoa, as quais guiam suas decisões de compra.
Seguindo essa linha de raciocínio, Mises estabeleceu uma analogia quanto ao conceito de soberania do consumidor em relação ao que se entende por democracia e mercado, ao afirmar que, assim como no caso de um eleitor que escolhe seus governantes em um processo eleitoral, o consumidor, a partir de suas decisões de consumo, define qual empresa ou qual serviço prevalecerá no mercado, ao afirmar que os consumidores são os verdadeiros “governantes” de suas decisões de compra, as quais acabam guiando a produção de bens e serviços em uma economia.
Outro expoente da Escola Austríaca de Economia, Friedrich von Hayek, que foi discípulo de Mises e Prêmio Nobel de Economia (1974), sustentou que a “soberania” é o resultado de uma ordem espontânea e é fundamental para uma sociedade livre, já que a liberdade individual se expressa através da escolha de consumo, influenciando-a na alocação de recursos produtivos, a qual deve ocorrer em um estado livre de qualquer coerção, no qual as pessoas não deveriam estar sujeitas a dominação alguma ou à dependência arbitrária da vontade de outro ou outros – de tal forma que a capacidade dos consumidores de escolher o que comprar e dos produtores de escolher o que vender é o que os torna efetivamente livres.
Uma noção similar da liberdade dos consumidores é esboçada por outros autores da escola austríaca como Nozick (1974) e Waldfogel (2005), os quais, no caso específico do conceito de soberania do consumidor, destacaram o valor intrínseco que os consumidores outorgam à sua independência na adoção de suas decisões de consumo. É importante ressaltar que a significação do conceito de liberdade empregada principalmente pela corrente de pensamento libertária, em especial a Escola Austríaca, associa a soberania do consumidor com a não intervenção do Estado nas decisões que os consumidores adotam nos mercados, seja em escala nacional ou internacional.
As guerras comerciais e suas consequentes políticas protecionistas por parte dos governos têm tido resultados pouco animadores na humanidade, em especial na história contemporânea do mundo. As atuais guerras comerciais, com seus acordos parciais que acabaram impondo novos esquemas tarifários, têm gerado consequências na estrutura de custos dos agentes econômicos, bem como nas expectativas de inflação para os mesmos e para os consumidores em geral, entre outras variáveis socioeconômicas que foram prejudicadas por estes cenários comerciais.
No recente estudo realizado pelo Federal Reserve Bank de Richmond e pelo Federal Reserve Bank de Atlanta, juntamente com a Duke University e o CFO Survey, intitulado CFOs Report Increased Optimism as Uncertainty Fades, oferece um importante indicativo sobre as expectativas dos decisores financeiros dos EUA acerca de alguns dos tópicos acima mencionados, em especial no que se refere às tarifas comerciais, à incerteza econômica e à inflação, entre outras variáveis socioeconômicas, como podemos observar no seguinte gráfico.

(Gráfico 1: O gráfico original não foi fornecido, mas o texto faz referência a ele. O gráfico ilustra as principais preocupações dos CFOs dos EUA, sendo a política comercial e as tarifas a principal preocupação.)
Pode-se observar no (Gráfico 1) que a política comercial e as tarifas continuaram sendo a principal preocupação dos diretores financeiros pelo terceiro trimestre, apesar de terem sofrido uma redução em relação ao anterior, não obstante, continuam sendo o fator que mais preocupou os CFOs. Da mesma forma, as preocupações sobre a política monetária e a inflação aumentaram, ocupando o segundo e terceiro lugares.
No que diz respeito à incerteza, observa-se uma diminuição de 19% no segundo trimestre para 11% na pesquisa do terceiro trimestre. A combinação desses resultados é coerente com indicadores de incerteza na política comercial, que diminuíram, apesar de continuarem sendo a principal preocupação dos entrevistados. É provável que a assinatura de alguns acordos comerciais entre os EUA e alguns de seus parceiros comerciais tenha reduzido parcialmente os níveis de incerteza sobre alguns cenários do comércio internacional.
Os demais aspectos socioeconômicos medidos nessa pesquisa são variáveis que apresentam um nível de sensibilidade menor à política comercial e sujeitos a outros fatores internos da economia americana.
Conclusões
O paradoxo dessas políticas de guerras comerciais que são travadas em nome do interesse nacional como sinônimo da defesa das grandes maiorias e da soberania nacional dos Estados-nações é que acabam lesionando, sob a ótica da Escola Austríaca, a soberania dos consumidores, provocando a incerteza econômica e a inflação, elementos que representam e afetam os interesses das grandes maiorias, sejam dos consumidores como dos produtores em qualquer nação em escala global. A evidência empírica referida no (Gráfico 1) é um claro exemplo que corrobora essa situação nos EUA, mas que, por sua vez, serve como um referente em escala mundial.
Referências