O golpe de Gilmar: ou o poder emana do povo ou o Estado não tem legitimidade
O que é uma constituição? Pode-se responder que ela é a lei maior de um país, a que baliza todas as demais. Isso é certo, mas ela é muito mais. Uma constituição é o que “constitui” um Estado, o que o legitima. Não que os Estados tenham literalmente origem a partir de assembleias constituintes. Tenho defendido que o contratualismo não deve ser entendido como uma descrição histórica do processo de formação dos estados, o que seria totalmente inverídico, mas como uma justificava a posteriori para a existência dos mesmos. Sim, é provável que a origem da maior parte dos Estados possa ser derivada de violências e usurpações, mas dado que, a despeito de fantasias anárquicas, ainda não inventamos uma forma de vivermos em sociedade sem a existências deles, o que nos restava era modificá-los de estruturas tirânicas para estruturas legítimas. Mas como proceder a essa modificação? O constitucionalismo é uma resposta.
Não por acaso, nomes ilustres do Brasil de 1820 se viram inicialmente muito entusiasmados com a Revolução Liberal do Porto, a qual prometia dar cabo do absolutismo e permitir liberdades políticas. Isso seria operado por meio de uma constituição. Ora, era óbvio que um regime absolutista prescindia de tal texto, pois é da natureza do absoluto que não haja constrições a limitá-lo. A legitimidade aqui estava dada pela história, pela “tradição”. Agora, não mais. Manter-se-ia o rei, mas ele reinaria em um regime constitucional. O Estado seria então “constituído” e legitimado em nome do povo, para o povo. Não demorou para os brasileiros, outrora entusiastas, perceberem o espírito antibrasileiro nas Cortes, gerando um divórcio que culminaria na independência. Independente, contudo, o Brasil não aceitaria retornar ao absolutismo. Anos depois, com a popularidade em derrocada, acusado de dar mais atenção a questões da antiga pátria do que brasileiras, aliciado pelas intrigas de elementos portugueses de um lado, criticado por brasileiros nativos de outro, as querelas que levariam D. Pedro I a abdicar do trono poderiam ser bem resumidas com os brados das duas correntes rivais. De um lado, clamavam portugueses e saudosos da coroa absoluta: “Viva ao imperador”, ao que respondiam os nativistas: “Viva o imperador, enquanto constitucional”.
Ilustra-se, assim, o papel da Constituição em um Estado moderno. É ela que, constituindo formalmente o Estado (ainda que ele já tenha existência prévia), delimita e, sobretudo, limita os poderes a serem exercidos. Como é possível, e há exemplos nesse sentido, que uma ditadura estabeleça também uma constituição para “legalizar” o regime, é importante dizer que, para ser legítima, uma constituição deve ter uma e única fonte de poder: o povo. Se D. Pedro I, após dissolver a assembleia constituinte, promulgou ele mesmo a constituição de 1824, hoje, algo assim seria inaceitável — é importante sempre tomar o cuidado de não fazer juízos do passado por meio de uma ótica contemporânea.
Não é por acaso que a Constituição de 88, em tese, vigente no país, estabelece logo no seu primeiro artigo o seguinte: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Entende-se, portanto, que o poder exercido por meio de agentes públicos é outorgado, emprestado, temporariamente concedido, mas não pertence intrinsicamente a eles. O poder emana do povo, pois a ele pertence e é apenas dado à impossibilidade de que ele o exerça diretamente, que se faz a concessão temporária a seus representantes, mas ele nunca cessa de ser do povo. Não se escreve que o poder “emanou” do povo, como um acontecimento ocorrido em algum momento do passado, mas que já tenha cessado; não, o poder “emana”, denotando uma perpétua continuidade.
Isso é o mínimo para se entender o que é uma democracia representativa e o que é uma constituição. A partir desse entendimento, não há forma de justificar a mais recente medida arbitrária do ministro do STF, Gilmar Mendes, que, em uma canetada, atentou não só contra o Senado Federal, alterando sem qualquer parâmetro legal o quórum mínimo para aprovação de impeachment de ministro do STF, como retirou do cidadão brasileiro o poder de apresentar pedidos nesse sentido, reservando — novamente, sem qualquer parâmetro legal — isso para o procurador-geral da República. O leitmotiv para tal achaque ao cidadão é dado, tanto por Gilmar quanto por outros ministros da corte e acólitos, todos os quais, sem ruborescer, falam da grande quantidade de pedidos de impeachment contra ministros do STF protocolados no Senado e do temor de que uma eventual maioria da direita na casa alta, a partir das eleições de 2026, possa vir a viabilizar ao menos um desses pedidos. Está posto, de forma insofismável, que a decisão tem caráter completamente política, visando à blindagem dos integrantes da suprema corte. Como não poderia deixar de ser, os entusiastas da coisa, escandalizados com o volume de pedidos de impeachment, ignoram solenemente que a) independentemente do número de pedidos, a prerrogativa de abertura ainda pertence ao presidente do Senado, b) há tantos pedidos, pois há arbítrios cometidos diuturnamente pela suprema corte há cerca de sete anos a fio.
Importante destacar que o julgamento pelo plenário “virtual” do STF do mérito da coisa está marcado para iniciar dia 12 deste mês. Ora, sabemos muito bem qual será o resultado, sobretudo depois da decisão monocrática, dita “emergencial”, de Gilmar. É certo que os pares referendarão a posição de Gilmar, e não poderia ser de outra forma, já que ela está em linha com a ideologia vigente hoje na corte, tão bem resumida pela ministra Cármen Lúcia ao nos chamar de “213 milhões de pequenos tiranos soberanos”.
Aqueles que se veem como uma elite naturalmente julgam o cidadão incapaz de questionar suas condutas e decisões. Na verdade, um dos argumentos que esposam é justamente o de que, não sendo o cargo de ministro do STF “político”, ele não faria jus às mesmas regras de impedimento que o presidente da República, por exemplo. É um argumento esdrúxulo, por várias razões. Antes de tudo, ignora que, enquanto o processo de impedimento de um presidente se inicia na Câmara, o de ministro do STF começa e termina no Senado. Longe de ser um facilitador, a ideia do constituinte foi justamente conferir maior “prudência” ao processo, já que a câmara alta tende a ser formada por políticos mais velhos, experientes e, em tese, mais “sábios”. Faz ainda mais sentido quando lembramos que a admissão ou não das indicações do presidente à suprema corte é prerrogativa do Senado (por enquanto, daqui a pouco é capaz de o STF usurpar isso também). Em segundo lugar, apesar de todo o terrorismo, nunca houve um impeachment de ministro do STF no Brasil. De fato, apesar de haver razões de sobra para o impeachment de Moraes e do próprio
Gilmar, eles continuam intocáveis e desimpedidos para cometer abusos. Em terceiro, o artigo 1º da Constituição não pode ser lido no sentido de que apenas o poder dos representantes eleitos emana do povo. Ora, a legitimidade da própria Constituição está dada pois os constituintes foram democraticamente eleitos; a CF, portanto, por óbvio, é obra legislativa. Tudo aquilo estabelecido na carta magna, seja em 1988, seja com as posteriores emendas em outras legislaturas, tudo, absolutamente tudo, incluindo a própria constituição do Supremo Tribunal Federal, tem origem legislativa, isto é, origem nos representantes eleitos pelo povo. Não significa dizer que há uma hierarquia no exercício dos poderes, mas há, pelo simples exercício da lógica, uma hierarquia na constituição legítima e democrática de um Estado e de todas as instituições que o integram: povo (fonte do poder) > Legislativo (primeiro como assembleia constituinte e depois como poder permanente) > demais instituições cuja constituição deve sempre ser entendida como derivada da fonte originária de poder (o povo), operada por meio dos representantes. Por fim, é puro deboche argumentar que os ministros do STF não estão sujeitos ao escrutínio popular por não serem políticos quando atuam como verdadeiros políticos e quando a suprema corte, segundo a própria confissão do seu ex-presidente, Barroso, se converteu sim em uma instituição política.
Não é por contrariar posições ideológicas pessoais que os ministros da suprema corte devem, como integrantes de quaisquer outras instituições públicas, estar sob escrutínio do povo, mas porque, na eventualidade de suas condutas se mostrarem incompatíveis com o cargo e/ou de seus decisões se converterem em peças de arbítrio, não podemos depender da boa vontade e exclusividade de um procurador-geral da República, o qual, não está imune a interesses corporativistas e ambições pessoais, para apresentar um pedido de impeachment.
É típico daquilo que chamo de fetiche do poder moderador, pretender que só os agentes políticos estão sujeitos ao escrutínio popular, mas não os demais agentes públicos. Ou todos as camadas do Estado estão sujeitos à fiscalização e respondem ao cidadão — mesmo que não diretamente — ou o artigo primeiro da CF resta nulo. A confirmação em plenário da decisão de Gilmar Mendes representará, na prática, exatamente isso.
Se nada mais, nada menos do que a corte constitucional não está sujeita à fiscalização pelos cidadãos, então o artigo primeiro está morto. Ocorre que isso implica a nulidade de todo o texto constitucional e a ilegitimidade do Estado como um todo. Ora, se a fonte originária do poder é o povo, como resta claro que é, se a Constituição é o que constitui legitimamente o Estado e todas as suas instituições, então a anulação da fonte originária retirará toda a legitimidade do que dela deriva. Ou o poder emana do povo e ele tem o direito de avaliar a conduta dos agentes públicos, incluindo ministros da suprema corte, ou estamos diante de uma usurpação. Claro que usurpação não é novidade nesta república juristocrática na qual vivemos hoje, mas quero que o leitor entenda que o que estamos presenciando não é apenas mais do mesmo: é um passo a mais, ainda mais radical, munido de um espírito francamente revolucionário. É fato que estamos há anos convivendo com um regime de exceção estabelecido pela suprema corte, mas, malgrado a pusilanimidade e conivência dos presidentes da Câmara e Senado até então, nós sempre tivemos a via institucional e legal para corrigir os abusos. O que o STF está fazendo é fechar essas vias. Numa ponta, usurpam o poder Legislativo e se tornam a instituição mais poderosa do país, e, na outra, cerceiam qualquer forma de controle que o povo possa ter sobre seus atos. É o óbito não declarado, mas prático, do artigo primeiro da CF. Ocorre que, se o poder originário do povo está anulado, também está a própria constituição do Estado.
Fontes:
História dos Fundadores do Império do Brasil: Volume II — A vida de D. Pedro I — Otávio Tarquínio de Sousa
História dos Fundadores do Império do Brasil: Volume VII — Fatos e Personagens em Torno de um Regime — Otávio Tarquínio de Sousa
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm



