O curioso caso do Jornal que queria ser estatal
Sem dúvida, o jornalismo é o grande pulmão de uma democracia saudável; nós sabemos que um país flerta com a tirania quando o jornalismo se vê emudecido ou coagido por forças políticas nessa nação. Quando o Estado ou os ideólogos ditam quais são as matérias e as verdades que devem ser veiculadas para o grande público, o jornalismo então se torna mero mensageiro de concepções políticas oficializadas; quando redações e jornalistas se tornam serventes de uma ideologia política, de pulmões da democracia os jornais passam a ser verdadeiros cancros sociais.
É bom observar que, segundo as recentes experiências do século XX, a democracia é sufocada e constrangida quando os meios jornalísticos se encontram mancomunados com ideologias, dependentes do Estado ou de partidos políticos. Quando as suas fileiras são formadas por cegos militantes e doutos ideólogos, o jornalismo sequer pode ser reconhecido como tal; torna-se um espectro longínquo do que deveria ser um real periodista. Nesse terreno ideológico, o exercício de investigação, levantamento de fontes e provas para denúncias verdadeiramente jornalísticas, se encontrarão pastosos e sem credibilidade alguma; não saberemos ao certo se a denúncia se curvará aos fatos ou aos factoides.
O jornalismo ideológico:
O próprio ato de “transmitir” notícias — isto é: o ato de“mostrar os fatos” à população — passa a ser algo contaminado por correntes de ideias que modificam ou tencionam certos aspectos da matéria, rumo às conclusões que favorecem os dogmas políticos daquele veículo ou jornalista. Por vezes, se torna totalmente claro quais são as tendências ideológicas do autor da matéria já no enunciado da notícia; quando não, um ou dois parágrafos do texto são suficientes para nos mostrar qual legenda partidária o suposto jornalista imparcial defenderá com unhas e dentes.
Não estamos, com isso, deslegitimando as opiniões de editoriais e colunas especializadas; um jornal pode e deve ter seus valores bem definidos e editoriais opinativos. O que estamos questionando, no entanto, é o trato dispensado aos acontecimentos que são fontes das notícias. Quando se trata do ato nobre de transmissão dos fatos, não queremos e não pedimos para que os reinterpretem por nós, mas tão somente que nos ofertem o material orgânico do ocorrido para que as nossas próprias consciências se dignifiquem a julgar e constituir suas opiniões sobre as temáticas expostas.
A liberdade como condição:
A condição mínima para o exercício do jornalismo é a liberdade, não tanto a exterior — que obviamente é bem-vinda, mas nem sempre é possível —, mas sim a interior. O jornalista, para bem informar e atuar como mensageiro da verdade, deve antes se encontrar limpo de quaisquer seduções ideológicas, políticas e/ou monetárias que se coloquem entre os seus olhos e a realidade; a única intercessão que o jornalista independente deve aceitar é aquela que o impele a não aceitar intercessão alguma. O fato pelo fato, doa a quem doer.
Se um grupo de ideias leva o jornalista a tencionar o ocorrido rumo às “verdades” que o convém, nesse mesmo instante ele se tornou vassalo de uma ideologia política (ou religiosa, ou político-religiosa).
Os fatos são tão somente os fatos, eles não votaram no Bolsonaro e nem no Haddad; todavia, se eles reafirmam as palavras de um ou de outro, não cabe ao jornalista se ofertar ao papel de alfaiate da realidade na busca de denegrir um ou alavancar o outro. O jornalista expõe os fatos e os receptores de tais fatos fazem com eles aquilo que a suas consciências aprouver.
Quando o profissional da informação se ergue ao posto de intérprete ou maquiador da realidade, a ignorância se torna o seu pupilo e a mentira o seu vício de estimação. Já diria Platão: “[…] a ignorância ocorre exatamente quando a alma que visa à verdade desvia-se do entendimento e não atinge a meta” (PLATÃO, Sofista. 228d).
O jornalismo militante:
As recentes críticas de Bolsonaro à Folha de São Paulo, neste sentido, se encontram balizadas pela reta conduta que se espera de um jornalismo sério. Após a desastrosa e desesperada “denúncia” de Patrícia Campos Mello, sob o título de Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp, o jornal Folha de São Paulo vem tentando diariamente reafirmar a sua credibilidade num ritmo quase que atabalhoado.
Sabendo que tal matéria passou longe de uma denúncia, não dispondo a jornalista de sequer uma comprovação mínima do que denunciou — pelo menos até o instante nada mostrou —, o jornal percebeu que acabou tratando como furo de reportagem e matéria especial um texto que caberia no máximo em um blog de conspiracionistas profissionais — desses que veem numa luz de poste distorcida uma inconteste invasão alienígena.
A verdade é que — e agora com certa distância da data da “denúncia” — tal reportagem foi o grande tiro no pé da cobertura eleitoral do ano de 2018. Após a matéria digna de Casos de Família que a Revista Veja duas semanas antes trouxe à tona, a Folha de São Paulo conseguiu descer mais um degrau e criar uma denúncia que carecia do mínimo respaldo dos fatos e documentos; documentos, aliás, que a matéria dizia existirem quase que aos montes. Ou seja, pelas informações que temos até o presente instante, a jornalista da Folha transformou fofocas ou “verdades convenientes” em matéria de capa do maior jornal do país sem possuir o menor respaldo comprobatório.
A nova canelada do referido jornal foi a recente matéria auto-elogiosa denominada Maior parte das menções a Bolsonaro e Haddad na Folha teve tom neutro; em suma, é a Folha dizendo que, segundo os seus próprios levantamentos, ela é neutra. Seria engraçado se não fosse patético.
O jornalismo perdido em suas funções:
O próprio jornalismo parece estar em desespero; perdido entre exercer a sua função social e o de se tornar retórico político e modelador de consciências. Os jornalistas estão se propondo a um papel indigno para a seriedade e corpulência democrática de suas funções; profissionais da informação se prestam ao serviço de militantes acéfalos, sob a luz do dia, sem sequer disfarçarem minimamente as suas intenções partidárias.
O jornalismo brasileiro se “autocorrompeu” àquilo que muitos pensaram ser papel das Fake News, isto é: levantar boatos e tacar no ventilador achismos parciais. O próprio jornalismo tradicional — ansioso em passar vergonha — tomou para si a missão de ser criador de rumores e panfleteiro de diretórios. Óbvio que não são todos os veículos que merecem tal crítica, mas certamente quase todos, em algum momento, se viram na encruzilhada entre o jornalismo e a militância. Glórias e hosanas àqueles que preferiram o bom e velho agir gazeteiro.
O sonho de ser do Estado:
A última mostra de angústia de um jornalismo moribundo, é a revolta do meio midiático quando o presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse que cortaria a verba estatal da Folha de São Paulo. Obviamente que, se a proposta de Bolsonaro é cortar somente as verbas da Folha de São Paulo, tal ato presidencial se tratará de uma punição e não de uma política concreta de não-financiamento estatal das grandes mídias; ou corta o financiamento estatal de todas, ou tal situação aparentará tão somente uma coação oficial.
No entanto, é inédito para mim que o desenlaçar de um jornal de sua amarra estatal passe a ser visto como um ato de tirania pelos próprios jornais. Para começar, devia ser um absurdo puro e simples que o Estado financiasse quaisquer jornais; e, pela primeira vez na história, um jornal, ao vislumbrar o fim de sua ligação monetária com o Estado, clama com campanhas e hashtag’s o seu direito de continuar se alimentando pelo cordão umbilical do Estado. Winston, protagonista da obra 1984, se veria numa crise existencial com tal situação.
A única situação em que eu veria a possibilidade de benesses — para as partes envolvidas — em uma coligação entre Estado e mídias jornalísticas é quando há uma troca sincera de interesses entre ambas. Como o eterno adágio atribuído a Milton Friedman nos recorda: “não há almoço grátis”; sendo assim, além do claro benefício monetário que o jornal recebe, cabe-nos questionar quais as vantagens que o Estado visa com tais vínculos.
Talvez agora, com poucos endossos do pai Estado, a mídia brasileira seja forçada a renovar as suas concepções de serviços jornalísticos e, por fim, comece a fazer verdadeiramente jornalismo ao invés de militância. O Brasil agradece, afinal, não é essa uma crítica de quem quer suprimir as mídias de informação, mas sim aquela poda que quer revigorar o tronco do verdadeiro jornalismo independente e livre. Tornar as gazetas pulsantes e joviais é o mesmo que manter a liberdade como o centro nevrálgico da sociedade brasileira. Um jornalismo livre é a condição para a liberdade de um país, é o motor principal de qualquer democracia; se o jornalismo já não é mais livre, não demorará muito para que o povo também deixe de sê-lo.