Morte, impostos e a névoa moral “moderna”

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Chegar aos sessenta anos me colocou diante de uma conversa inevitável. Não um drama, mas um diálogo silencioso comigo mesmo. A morte deixou de ser abstração distante e passou a sentar-se à mesa. Os impostos — essa outra certeza — deixaram de pesar apenas no bolso e passaram a ferir a dignidade. E uma terceira pergunta, a mais incômoda, impõe-se: quando foi que deixamos de nos constranger moralmente?

A resposta não está apenas nas circunstâncias, mas na falta de espírito do tempo. Muitos louvam essa “nova consciência” que se apresenta como progresso, mas que carrega algo de paradoxalmente regressivo. Uma modernidade que se proclama virtuosa enquanto dissolve os fundamentos que nos tornaram civilizados. Não falo de tradição como nostalgia, mas como sabedoria acumulada. São limites testados pelo tempo para conter o pior de nós.

Adam Smith chamou de “espectador imparcial” essa instância íntima que nos observa e julga antes de qualquer tribunal. Ele não prometia virtude, apenas lembrava o essencial. Nem tudo que desejamos deve ser feito; nem tudo que pode ser justificado deve ser aceito; nem tudo que é permitido é moralmente concebível. A legalidade não esgota a ética. O que desapareceu não foi a imperfeita virtude humana, mas o freio que impedia a conveniência de se passar por retidão.

No lugar desse freio, instalou-se uma névoa moral, negra. Tudo ganhou contornos difusos. A mentira passou a se apresentar como narrativa destruidora. O cinismo deixou de ser desvio para se tornar modo de ser. A hipocrisia vestiu o figurino da causa nobre. A imoralidade explica-se, racionaliza-se, normaliza-se. Nada mais choca. A exceção virou regra. O absurdo perdeu o escândalo.

Esse cenário se intensificou num mundo acelerado e teatral. O cinismo sempre existiu, mas antes era contido; agora é exibido. As relações sempre envolveram interesse, mas havia mediações e constrangimentos. Hoje, o interesse é performado. As relações tornaram-se frágeis, mais preocupadas com aparência do que com essência. Não porque nos tornamos piores, mas porque deixamos de nos conter.

A isso, soma-se a infantilização do indivíduo. Uma regressão moral disfarçada de sensibilidade. O adulto cedendo lugar ao sujeito permanentemente ofendido, avesso a limites, convicto de que toda dor é culpa do outro. A responsabilidade foi trocada por ressentimento; a autocontenção, por direito à raiva.

Ressentimentos antes contidos agora afloram sem freio. A raiva deixou de ser alerta interior e passou a funcionar como identidade. Uma sociedade que transforma ressentimento em virtude perde a capacidade de construir. Ela apenas reage, acusa e exige compensações morais permanentes. Os desdobramentos dessa cultura não são retóricos. São trágicos. E factualmente ameaçadores.

Enquanto isso, o cidadão comum empurra sua pedra morro acima. Trabalha, produz, paga, e muito. Impostos escorchantes recaem com especial crueldade sobre os mais pobres, sem retorno proporcional em serviços públicos dignos. Um Sísifo moderno, condenado não pelos deuses, mas por um sistema que consome sem constrangimento e promete sem entregar. A dignidade se esvai no desgaste cotidiano.

Não somos bons por natureza, mas tampouco irremediavelmente maus. Somos falíveis. E civilização é contenção. Ela nasce quando assumimos limites e responsabilidade antes de exigir virtude do mundo. Quando essa contenção é ridicularizada e toda herança moral é dissolvida numa modernidade supostamente redentora, o resultado não é progresso, é atraso civilizacional. Como escapar disso? Talvez o primeiro passo não seja coletivo, mas íntimo.

É preciso reconstruir, em silêncio, o próprio espectador imparcial. Reaprender a sentir vergonha do que merece vergonha. Dizer “não” a si mesmo antes de exigir virtude dos outros.

Sim, continuaremos sem escapar da morte. Jamais escaparemos dos impostos, asfixiantes. Mas talvez ainda seja possível escapar dessa névoa moral destruidora – somente se tivermos coragem de abandonar a infantilização confortável e reassumir a difícil, e indispensável, condição de adultos morais, que pensam reflexivamente.

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Alex Pipkin

Alex Pipkin

Doutor em Administração - Marketing pelo PPGA/UFRGS. Mestre em Administração - Marketing pelo PPGA/UFRGS Pós-graduado em Comércio Internacional pela FGV/RJ; em Marketing pela ESPM/SP; e em Gestão Empresarial pela PUC/RS. Bacharel em Comércio Exterior e Adm. de Empresas pela Unisinos/RS. Professor em nível de Graduação e Pós-Graduação em diversas universidades. Foi Gerente de Supply Chain da Dana para América do Sul. Foi Diretor de Supply Chain do Grupo Vipal. Conselheiro do Concex, Conselho de Comércio Exterior da FIERGS. Foi Vice-Presidente da FEDERASUL/RS. É sócio da AP Consultores Associados e atua como consultor de empresas. Autor de livros e artigos na área de gestão e negócios.

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