Morte digital: a morte civil do século XXI e o caso MBL

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Ainda estou perplexo com o banimento de quase 200 páginas conservadoras e quase 100 perfis de pessoas existentes e reais por simples dissensão de opinião. Sim, dissenso de opinião, pois como meu amigo Carlos Augusto Afonso mostrou, equívocos jornalísticos até a Globo comete, e nem sempre por acidente.

Especificamente quanto ao banimento de perfis, como aconteceu com meu amigo Renan Santos, eu reputo essa atitude como muito parecida com o “civiliter mortuus”, ou “morte civil”.

Morte civil foi um instituto de direito romano que perseverou até a época do Sacro Império Romano Germânico, em que um súdito de um reino perdia seus direitos civis, todos eles (direito de casar, de contratar, de possuir bens, etc), podendo inclusive ser até assassinado sem que houvesse consequências para o assassino. Na prática ele era um morto em vida. Essa pena normalmente era aplicada a inimigos do Estado ou especificamente do regime no poder.

Por ser uma medida considerada absolutamente desumana, foi banida do ordenamento jurídico moderno, e pode ser considerada a pena mais desumana existente, pois inviabiliza qualquer exercício de dignidade da pessoa humana. Ela deixa de ser considerada uma pessoa mesmo, na prática.

O século XXI é o século das mídias digitais. As relações pessoais, sociais, políticas e profissionais passam pela rede. Ainda que uma determinada pessoa não esteja em determinada rede social “x” ou “y”, em regra ela está conectada com seus pares em outras redes. Somente os absolutamente miseráveis hoje não possuem um celular ligado a uma rede pública e conectado ao mundo pelo seu aparelho. A vida social hoje é vivida ou estruturada na rede social.

E de todas as redes sociais, a mais importante do mundo hoje é a mantida pela empresa Facebook. Essa rede conecta pessoas do mundo inteiro e é a referência de manifestação oficial de pessoas e empresas. Por mais que seja um serviço privado, o peso público desse serviço é inenarrável, até mesmo para a preservação do mais importante direito dentro de uma democracia: a liberdade de expressão.

A democracia moderna é uma democracia digital.

Quando uma empresa-chave, com influência determinante no processo social e eleitoral, decide excluir, sem maiores discussões, perfis pessoais de agentes políticos, ela está, sem dúvida, interferindo na balança de poder dentro do processo macro de formação de opiniões.

Mas se existe um “interesse público” envolvido (e claramente prejudicado) nessa questão, o que dizer da posição das pessoas que foram pessoalmente lesadas, muitas delas que nada tem a ver com a história? (recebi a notícia que até o perfil da mãe de um administrador de uma página do MBL teve sua conta suspensa!)

Em um mundo de conectividade, onde a sua liberdade de expressão está intimamente ligada ao meio onde você se manifesta, a exclusão de um perfil da mais importante rede social por dissensão ideológica está claramente correlacionada com a morte civil romana. O excluído deixa de existir no mundo digital, e por consequência deixa de poder praticar sua liberdade de expressão e a possibilidade de empreender, socializar e promover política. A morte digital é a “morte civil 2.0”, versão século XXI.

Algumas objeções poderiam ser feitas até em argumentos liberais: (i) o facebook é um serviço privado e pode exercer sua liberdade de não querer certos conteúdos divulgados na sua rede; (ii) não podemos chamar o que ocorreu de morte civil porque o excluído pode sempre usar outras redes sociais; (iii) que, como todo direito, até a liberdade de expressão possuiria limites, podendo ser um deles a vedação ao falso testemunho.

Sobre o primeiro argumento, que é, de longe, o mais poderoso, seria de difícil contraposição se o próprio Facebook não se utilizasse financeiramente da máquina estatal para se financiar, bem como usar da existência das eleições para faturar MUITO dinheiro. Em suma, ele se locupleta da própria democracia e da ideia de que existem direitos não-naturais que são construídos a partir do debate político, o que dá a ele pouca autoridade para evocar um argumento puramente liberal. Seria uma contradição lógica. A própria empresa, pela sua lógica financeira, pressupõe que é legitima a construção de limites à sua liberdade de atuação e exercício empresarial.

Sobre o segundo argumento, eu uso uma analogia para contrapô-la. Se um cidadão tivesse contra si declarada a morte civil por um tribunal do Sacro Império, mas ele fugisse para um país (digamos, a Inglaterra) onde naquele lugar ele seria respeitado como um cidadão com todos os seus direitos civis, isso não muda o fato que ele estaria civilmente morto no Sacro Império. A morte civil é uma questão de soberania espaço-temporal. Sendo o Facebook essa potência midiática, a morte civil do apenado com a exclusão do perfil é muito significativa.

Quanto ao terceiro argumento, ele traz dois problemas: a existência do crime e a eventual dosimetria da pena. No âmbito da existência do crime, é de se discutir se há de fato uma rede de fakenews ou não, e resta claro que, se erros ocorrem, os erros de páginas como o “jornalivre” e o “diário nacional” são muito menores em profundidade e relevância do que o de mídias como o Jornal O Globo, que não faz nem dois anos havia declarado que o Presidente Temer renunciaria, apenas para ficar na fakenews mais aberrante. No âmbito da dosimetria da pena, fica a pergunta: falso testemunho eventual enseja morte digital de um perfil pessoal ou empresarial? Porque se essa é a justa medida para falso testemunho, bem, basta ver o filme “Rede Social”, que conta a história da criação do Facebook, para que se chegue a conclusão de que, nos parâmetros zuckerberguianos, a forca é o único lugar para o qual o pescoço de Zuckerberg deveria se destinar, após mentir e ludibriar ex-namoradas, ex-sócios, ex-clientes e ex-professores.

Ou o Facebook se responsabiliza pela extensão de seu poder e pelo seu papel na nova democracia brasileira de maneira imparcial, ou essas mortes civis do novo mundo digital podem gerar uma guerra jurídica sem precedentes, cujo resultado inesperado pode, inclusive, se voltar contra a própria empresa e seu compulsivamente mentiroso fundador além de – porque não? – assassino digital.

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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