Magnitsky e dosimetria: o preço da frustração
Esperança e ilusão são irmãs, filhas da nossa busca incessante por um mínimo conforto psicológico. Porém, enquanto a esperança é indispensável para nos motivar a deixar a inércia e a lutar por nossos objetivos, sua irmã maligna, a ilusão, engana nossa percepção a ponto de nos conduzir a escolhas infrutíferas. Sempre que seduzida pela ilusão, a esperança, maculada pela falsidade, nos torna mais tolos e manipuláveis pela má fé alheia.
Meses atrás, com a decretação da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes e esposa, o governo americano, em comunicados lastreados por minuciosa fundamentação fática, havia selado seu entendimento sobre a reprovabilidade das condutas do togado violador de direitos humanos, assim como de sua consorte e operadora financeira. Surgia ali a esperança legítima de que a força de dissuasão exercida pelo exterior, tanto via sanções contra o abusador quanto via tarifas, motivasse o nosso congresso a manejar os remédios constitucionais necessários à restauração do Estado de Direito entre nós. Ao lado da esperança, também se fazia presente uma boa dose de ilusão, sempre imediatista e vã, que gerou certo sebastianismo em torno dos efeitos mágicos de um poder redentor vindo de fora. Sim, caro leitor, muitos brasileiros acreditavam que, no lugar do congresso, seria Trump o justiceiro que libertaria os reféns políticos da masmorra para lá trancafiar o violador.
No entanto, apesar do peso da caneta da superpotência mundial, Moraes não se comportou como um sancionado nem pareceu vivenciar as agruras da pena. Ao contrário, a escalada insana de seu autoritarismo se manifestava em provocações públicas dirigidas aos EUA, no julgamento-relâmpago dos núcleos da dita “trama golpista”, na prisão de Bolsonaro e no subsequente encarceramento do ex-presidente e de membros da nossa elite militar. A despeito de sua exclusão da economia do dólar, o togado não foi visto esmolando, privado de seus proventos oficiais depositados no Banco do Brasil, da disposição de contas bancárias ou do uso de cartões de crédito. Em cenário bem distinto do previsto, manteve seu prestígio social e protagonizou eventos de enorme repercussão, com destaque para um recente simpósio do ministério público nacional, patrocinado por grandes empresas e organismos, dentre os quais a Febraban – que deveria ter bloqueado seus ativos! -, e até pela filial nacional da americana Coca-Cola.
Diante do visível descompasso entre narrativas sobre uma débâcle iminente de Moraes e os indicativos de seu poder em ascensão, os até então esperançosos começavam a perceber a ineficácia da medida contra o togado e a imaginar que o governo estrangeiro não estivesse envidando pressões políticas e diplomáticas suficientes para a colocação em prática da punição. Já os iludidos, sempre dispostos a fecharem os olhos aos fatos em prol de suas convicções, mantinham o discurso inabalável de que o peso da Magnitsky logo recairia sobre os ombros do violador, cujos “dias estariam contados”.
O tempo passou e nos calou a todos. Sem justificativa detalhada, e em deliberação cercada pela fumaça de possíveis influências de empresários de reputação nada ilibada, Trump houve por bem revogar as sanções contra o casal Moraes. Sob a alegação pífia de que a aprovação do PL da Dosimetria na câmara teria sinalizado uma “melhoria” nos recentes entendimentos entre Brasil e EUA, o potentado estrangeiro zombou dos nossos perseguidos políticos e de toda a comunidade internacional junto à qual havia atestado a prática de violações gravíssimas por parte do togado brasileiro. Humilhou, acima de tudo, a lei de seu próprio país, que pareceu ter transformado em instrumento de chantagem sabe-se lá de qual natureza. Em nome de interesses inconfessados, e em uma amostra da brutalidade da política real e das relações exteriores, Trump mandou às favas a ética e o Direito para retirar as sanções contra Moraes, negando todos os fatos por ele explicitamente reconhecidos havia poucos meses.
Em paralelo a mais essa dança macabra no concerto das nações, evoluía entre nós o tal projeto da dosimetria, redigido em “acertamentos” nada republicanos entre seu relator Paulinho da Força, o ex-planaltino Temer, Gilmar Mendes e o próprio Moraes. Além do vício representado pela interferência inconteste de togados na atividade legislativa, o texto estava bem longe de representar qualquer avanço na retomada da institucionalidade. Como já discutido nesse espaço, as modificações por ele propostas à Lei de Execução Penal e ao Código Penal implicavam a necessidade do ajuizamento de revisões criminais ao STF, devolvendo aos abusadores o poder de decidir sobre a progressão de pena aos condenados vítimas dos abusos. Ainda assim, o projeto foi aprovado a toque de caixa pelo senado, em uma pseudo-solução de ocasião que rendeu visibilidade a agentes políticos, mas que não devolverá os encarcerados aos seus lares e às suas famílias e que, menos ainda, virá a apagar os efeitos civis perversos das condenações, tais como as indenizações milionárias e as eventuais perdas de patentes por militares.
Quando a esperança é contaminada pela ilusão, e essa se esvai diante dos fatos, sobra o gosto amargo da frustração, ao preço impagável da perda de oportunidades. No cárcere injusto, cada segundo de vida é uma eternidade desperdiçada; na imposição do pagamento de valores estratosféricos, cada centavo trabalhado é confiscado sem dó pelos agentes de um aparato estatal abusivo. Nos últimos dias, multiplicaram-se incisivos discursos parlamentares e postagens de otimismo em favor da dosimetria, enquanto as vítimas do autoritarismo continuaram penando nas masmorras.
A sonhada anistia, prometida pela oposição em veementes manifestações de rua, deu lugar à inócua dosimetria, que, se aprovada, poderá vir a ser derrubada por seus próprios “pais” togados, no âmbito de eventuais ações de inconstitucionalidade. Ironia de uma terra tão bananeira quanto a nossa, cujo parlamento tornou a cumprir os desejos supremos, em mais uma renúncia tácita à sua autonomia funcional. A esperança legítima de reações institucionais, tanto do exterior quanto, sobretudo, de nossos congressistas, foi envenenada pela ilusão “dosimétrica”, e, a serem mantidas as atuais circunstâncias, é de se esperar que togados sigam condenando inocentes como Filipe Martins pelo “delito abominável” de ser um ideólogo.
Porém, podemos e devemos nutrir novas esperanças, reunindo forças em torno da formação de mentes livres dos mantras do establishment e conscientes do desafio premente da nossa geração: fazer com que togados voltem a ser juízes, devolvendo-os à sua “casinha” institucional. Da mesma forma como podemos e devemos dar adeus às ilusões, em sinal de amadurecimento. Quanto à frustração, faço votos de que possamos lidar com ela de forma digna e corajosa; afinal, trata-se de sensação inevitável no horizonte de curto prazo do nosso autoritarismo togado.



