Ideologia, eu quero uma pra viver
Cazuza cantava que precisava de uma “ideologia para viver”. No entanto, sua obra revela uma ironia: o que buscava não era uma ideologia fechada, mas uma forma de viver sem amarras, intensamente e em liberdade. Quando afirma que “o tempo não para”, Cazuza desnuda a hipocrisia social e política que insiste em mascarar as injustiças, sempre à sombra de um Estado que promete soluções enquanto perpetua privilégios. Em Ideologia, sua confissão amarga traduz uma geração órfã de referências autênticas, forçada a escolher entre falsos redentores. Sua “ideologia” era, na verdade, o individualismo radical, o inconformismo contra dogmas e a busca pela autenticidade. É nesse ponto que se encontra o paralelo com o liberalismo: ambos rejeitam o conformismo de massa e a submissão às estruturas que sufocam o indivíduo.
O problema é que, enquanto a esquerda compreendeu a importância de criar comunidade, os liberais se orgulham de lutar isolados. A esquerda construiu seus diretórios, sindicatos, ONGs, coletivos, partidos, narrativas unificadas. Não importa se o militante acredita em cada detalhe do programa, o que importa é que ele se sente acolhido e parte de uma causa. Já o liberal, por insistir em afirmar sua autonomia como indivíduo, acaba exilado em si mesmo. Isso explica em parte por que a hegemonia cultural está tão distante do campo liberal: faltou organização, faltou senso de pertencimento, faltou comunidade. A liberdade se tornou um discurso solitário, quando deveria ser um elo de união entre aqueles que a valorizam. Não basta dizer, como em Brasil, “meu partido é um coração partido”. É preciso transformar esse partido inexistente numa comunidade real de valores e princípios que ofereça abrigo e voz.
A crítica não deve, contudo, se limitar à esquerda. Também à direita abundam equívocos. O conservadorismo brasileiro, em muitas de suas versões, não se contenta em preservar tradições, mas busca impor valores por meio do Estado, contrariando o princípio liberal de que cada indivíduo deve ser responsável por suas escolhas. O populismo de direita, por sua vez, repete o erro da esquerda ao inflar a máquina estatal, substituindo apenas o grupo beneficiado. Em ambos os casos, os princípios liberais de limitação do poder, responsabilidade individual e livre associação são traídos em nome de ganhos políticos imediatos. Essa contradição distancia ainda mais o liberalismo de quem deveria ser seu aliado natural, criando um paradoxo: as ideologias de direita fragmentam-se e se afastam de seus fundamentos porque trocam a coerência por conveniência. “Meus inimigos estão no poder”, como cantava Cazuza, e continuam lá porque os liberais não aprenderam a se proteger uns aos outros.
Nesse contexto, a provocação de Cazuza ganha força: “ideologia, eu quero uma pra viver”. A pergunta que se impõe ao liberalismo brasileiro é se ele terá maturidade para oferecer essa “ideologia” não como catecismo, mas como caminho de vida. Uma ideologia que não precisa de coletivismo, mas que oferece senso de pertencimento. A esquerda entendeu que a política não se sustenta sem emoção, símbolos e comunidade. O liberalismo, se quiser sobreviver, precisa compreender o mesmo. O Brasil carece desse espírito: precisamos de associações liberais vivas, de grupos culturais, intelectuais e comunitários que mostrem que a liberdade não é apenas um princípio teórico, mas uma experiência compartilhada. “Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”, já alertava Cazuza, e essa repetição será inevitável se não houver mudança de atitude.
O maior desafio está em evitar a solidão liberal. Sem comunidade, o indivíduo livre corre o risco de ser esmagado pela massa organizada, seja pelo populismo da esquerda, seja pelo autoritarismo da direita. A liberdade, para ser preservada, precisa de um círculo de proteção feito de pessoas que compartilham valores, ainda que sem unanimidade absoluta. A esquerda usa a comunidade para aprisionar; o liberalismo deve usá-la para libertar. E é aqui que Cazuza, talvez sem perceber, nos deixou uma pista: não basta cantar o desejo de uma ideologia, é preciso transformar esse desejo em prática. Uma comunidade liberal, sem cair em coletivismos, pode oferecer esse pertencimento que falta. Caso contrário, os liberais continuarão como vozes dispersas, cada uma clamando por liberdade enquanto o Estado cresce, as narrativas se consolidam e a cultura se entrega às soluções fáceis da servidão.
Se o liberalismo é uma ideologia digna de ser vivida, ele precisa deixar de ser apenas um exercício intelectual e se tornar uma experiência social, cultural e comunitária. Não é abdicar do individualismo, mas compreender que até mesmo a liberdade exige aliados. “O nosso amor a gente inventa”, dizia Cazuza, e a esquerda inventou um amor coletivo que, mesmo falso, gera pertencimento. O liberalismo não pode viver de paixões inventadas; precisa erguer uma comunidade real. Sozinho, o liberal é Cazuza gritando sua revolta para o vazio. Em comunidade, pode transformar sua voz em movimento, sua inquietação em força e seu inconformismo em futuro.