Fama, ideologia e a falsa autoridade
Ontem à noite, assisti a “Jay Kelly”. Não estava em busca de nenhuma revelação, de algum insight especial. Queria apenas ver um filme. Mas há momentos em que uma frase, dita quase de passagem, atravessa a cena e permanece. Em determinado ponto, o personagem de George Clooney diz algo de uma simplicidade desconcertante: “eu sou apenas um ator que ficou famoso”. Nada além disso. Nenhuma aura moral. Nenhuma pretensão de autoridade universal. Apenas um profissional consciente do próprio ofício.
É claro que o filme admite várias leituras. “Jay Kelly” é rico em nuances. Ainda assim, foi essa frase que continuou ecoando — talvez porque confronte, com honestidade rara, um dos maiores equívocos do nosso tempo. Vivemos uma época em que a fama deixou de ser consequência do trabalho para se transformar em credencial moral.
O ator — e, por extensão, o artista —, cuja excelência deveria ser medida pela qualidade da encenação, passou a ser tratado como intérprete autorizado da realidade, como se o sucesso artístico concedesse automaticamente lucidez política, conhecimento econômico e superioridade ética. Não. Não concede.
Hollywood é o laboratório mais evidente desse desvio. Atores que, fora da cena, assumem o papel de tribunos morais, quase sempre alinhados a uma visão progressista padronizada, emocionalmente confortável e intelectualmente frágil. Tudo o que escapa desse enquadramento vira inimigo. A discordância é tratada como ameaça moral. O argumento cede lugar ao slogan, repetido com convicção cênica. O palco invade o debate público — e o empobrece.
Esse fenômeno não se limita aos Estados Unidos. No Brasil, ele se manifesta com a mesma naturalidade — e, por vezes, de forma grotesca. Hoje eu o enxerguei com nitidez. Fernanda Torres é uma grande atriz. Isso não está em discussão. O problema começa quando a fama é usada para sustentar posições políticas demagógicas, salivando sectarismo ideológico como cães de Pavlov, sobre temas que ela claramente não domina. Como cidadã, pode opinar. Como figura pública, influencia. E é exatamente aí que reside o risco: influência sem lastro intelectual não esclarece, induz. Não eleva o debate; o reduz.
O equívoco se torna ainda mais visível quando essa lógica alcança o mercado. A Havaianas sempre foi um símbolo de universalidade — uma sandália que todo mundo usa, independentemente de preferências políticas. Ao se associar a uma posição ideológica à esquerda, a marca rompe esse pacto silencioso com o consumidor e ativa a reação imediata daqueles que não se reconhecem nessa visão. Com cerca de 80% do mercado brasileiro de chinelos de borracha, a Havaianas não tem margem para politizar sua base. É um tiro no pé. Ao abandonar a neutralidade que a tornou dominante, passa a perder consumidores por escolha própria.
Não, nada disso é censura. É limite. O artista deve ser bom naquilo que faz. Quando abandona o ofício e assume autoridade moral sem conhecimento — entregando-se à lacração —, cai no ridículo. Quando marcas trocam universalidade por militância, transformam clientes em adversários. Em ambos os casos, o erro é o mesmo: confundir fama com autoridade.
Como tenho escrito, sem alinhamento com o negócio, qualquer posicionamento político, à esquerda ou à direita, é erro estratégico. Pois Jay Kelly recoloca as coisas no lugar. Um ator é apenas um ator. Um produto é apenas um produto. E uma sociedade livre começa quando ninguém é tratado como oráculo apenas porque sabe brilhar sob os holofotes. Nada mais singelo; quando a fama se transforma em autoridade moral, a razão é sempre a primeira a sair de cena.



