Entre dólar, ouro, dívida e Bitcoin

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Desde o colapso do sistema de Bretton Woods em 1971, consagrado pelo chamado Nixon Shock, o mundo passou a operar sob um arranjo monetário internacional ancorado na hegemonia do dólar, porém desvinculado de qualquer tipo de lastro material. Enquanto o sistema de 1944 combinava a liderança monetária dos Estados Unidos com disciplina fiscal e conversibilidade do dólar em ouro, a configuração atual abandonou o seu pilar mais estabilizador: a âncora física que limitava a emissão de moeda e restringia o expansionismo fiscal.

Enquanto a moeda era lastreada em ouro, um recurso escasso, a quantidade de dinheiro em circulação era proporcional aos estoques do metal. Quando esse lastro foi removido, retirou-se a principal trava das impressoras, permitindo a criação de novos dólares sem contrapartida real. O resultado, embora funcional por décadas graças ao poder geopolítico americano e à ausência de alternativas monetárias confiáveis, hoje demonstra sinais evidentes de esgotamento.

A hegemonia do dólar persiste, mas sua base é estruturalmente instável. Sem um lastro real, a funcionalidade da moeda americana repousa sobre dois pilares frágeis: a credibilidade fiscal dos Estados Unidos e a eficácia da política monetária conduzida pelo Federal Reserve. Ambos têm sido colocados à prova. O gasto público norte-americano segue trajetória ascendente, com déficit fiscal projetado pela Congressional Budget Office (CBO) para ultrapassar os US$ 1,9 trilhão em 2025, mesmo em um cenário de crescimento. A dívida pública americana, por sua vez, já ultrapassa US$ 34 trilhões (dados atualizados de 2025), comprometendo progressivamente a capacidade do Estado de honrar seus compromissos sem pressionar o sistema monetário.

Nesse cenário, a taxa de juros passa a desempenhar múltiplas funções críticas. Além de atuar como mecanismo de controle inflacionário, papel anteriormente desempenhado pela escassez do ouro, ela também se torna o principal instrumento de sustentação da arquitetura monetária global, funcionando como atrativo para a manutenção do dólar como reserva internacional. No entanto, os títulos do Tesouro americano, que operam como lastro indireto do dólar, não foram concebidos para sustentar a hegemonia monetária, mas sim para financiar os déficits fiscais crescentes de Washington. Essa sobreposição de funções gera uma tensão estrutural: o aumento da dívida exige juros mais altos, o que encarece o serviço da dívida, agrava o déficit, eleva o risco de descontrole e prejudica o papel da taxa de juros em suas outras funções. Este último, por sua vez, provoca nova pressão por juros mais altos, realimentando o ciclo.

Como resposta, bancos centrais vêm reduzindo sua exposição ao dólar, substituindo parte das reservas por ouro e outros ativos. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), a participação do dólar nas reservas internacionais caiu de 65% para 58% na última década. Paralelamente, as compras de ouro por bancos centrais bateram recordes em 2022 e 2023, lideradas por países como China, Turquia e Índia. Jamais, em toda a história, os EUA haviam gasto tanto com pagamentos de juros, ultrapassando US$1 trilhão anuais, segundo o U.S. Treasury Department, evidenciando um modelo em espiral de endividamento.

A fragilidade do arranjo monetário atual expõe o sistema a riscos crescentes de transição desordenada. A perda de hegemonia pode desencadear volatilidade cambial prolongada, à medida que os agentes reavaliam suas reservas e se reposicionam em um ambiente menos previsível. Isso pode provocar fugas de capitais em mercados emergentes, que dependem da estabilidade proporcionada pela moeda americana. O vácuo deixado pelo dólar também pode intensificar disputas geoeconômicas, fomentando guerras cambiais baseadas em desvalorizações competitivas e controles de capitais, além de incentivar nacionalizações cambiais e protecionismos monetários.

Ainda assim, é necessário reconhecer que, mesmo sob desequilíbrios fiscais e expansão monetária, os Estados Unidos seguem sendo vistos como porto seguro institucional do sistema financeiro. A profundidade e liquidez de seus mercados, a previsibilidade jurídica, a independência do Fed e a estabilidade política relativa oferecem um lastro intangível que continua a atrair investidores globais. Essa resiliência institucional, embora muitas vezes subestimada, ajuda a postergar o colapso do modelo fiduciário vigente.

Diante dessa conjuntura, impõe-se uma conclusão inevitável: a arquitetura monetária inaugurada em 1971 está em estado de exaustão funcional. Para que a confiança sistêmica seja restaurada e a sustentabilidade de longo prazo assegurada, é necessário revisar um ou mais de seus pilares. O caminho mais direto, e menos palatável politicamente, seria a imposição de disciplina fiscal aos Estados Unidos, algo que exigiria reformas profundas e impopulares, com cortes de gastos e revisão de benefícios sociais. O segundo caminho, mais gradual e incerto, seria a erosão controlada da hegemonia do dólar, com o avanço de uma cesta de moedas internacionais (como o yuan, euro e rúpia) ou mesmo a criação de moedas digitais soberanas interligadas por blockchains reguladas.

Por fim, a terceira via — e talvez a mais transformadora — seria o retorno a um sistema com algum grau de lastro real. O ouro ressurge como principal candidato, dado seu histórico milenar de confiança. No entanto, alternativas contemporâneas como o Bitcoin também ganham força. Sua escassez programada, natureza descentralizada e resistência à censura oferecem um contraponto moderno à inflação estrutural do sistema fiduciário. Ainda assim, o Bitcoin apresenta limitações práticas importantes: elevada volatilidade, baixa adoção institucional, preocupações ambientais com a mineração e desafios tecnológicos de escalabilidade e governança. Esses gargalos precisariam ser superados antes de considerá-lo uma âncora confiável para um novo arranjo monetário global.

A redefinição do sistema monetário internacional parece, portanto, uma questão de “quando” e não mais de “se”. O mundo avança para uma nova era, cujos contornos ainda são incertos, mas cujo ponto de partida será, inevitavelmente, o colapso ou a reconfiguração do modelo fiduciário centralizado no dólar.

*João Loyola é associado do IFL- BH.

*Tiago Oliveira Mota é economista e empresário com atuação em Belo Horizonte. É bacharel em Economia pelo Ibmec e mestre em Economia Aplicada pela USP. Associado ao Instituto de Formação de Líderes de Belo Horizonte (IFL-BH), atua na interseção entre análise político-econômica e gestão empresarial.

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