Dívida de Minas Gerais: passado e futuro

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A dívida pública de Minas Gerais remonta ao final dos anos 1990, no contexto do PROES, quando a União assumiu até R$ 18 bilhões em passivos decorrentes da liquidação dos bancos estaduais, como o Bemge e a MinasCaixa, por meio de um refinanciamento de 30 anos com juros de 7,5% ao ano acrescidos de IGP-DI. Naquela época, o acordo parecia vantajoso. No entanto, os encargos se tornaram impagáveis à medida que as receitas estaduais não acompanharam o ritmo da correção, tornando o saldo cada vez mais insustentável.

Em 2014, autorizou-se uma renegociação que substituiu o IGP-DI por IPCA mais 4% ao ano, com possibilidade de adesão à Selic, mas sem alterar o limite de comprometimento de até 13% da Receita Corrente Líquida, definido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A partir de 2013, o Estado registrou déficits sucessivos, e liminares obtidas junto ao Supremo Tribunal Federal permitiram a paralisação dos pagamentos em 2018, o que, embora aliviasse a situação a curto prazo, alimentou a explosão da dívida. De 2019 a 2023, Minas viu seu passivo aumentar em 44,97%, passando de R$ 114 bilhões para R$ 165,7 bilhões. Em 2024, o montante já ultrapassava R$ 188,7 bilhões, quase 1,5 vez a receita prevista para 2025, de R$ 126,7 bilhões.

Esse crescimento abrupto da dívida entre 2019 e 2024 não decorre de novos gastos, tampouco da contratação de novos empréstimos. O principal fator foi a combinação perversa entre a suspensão dos pagamentos à União, autorizada judicialmente, e um modelo de correção financeira que penaliza o devedor mesmo quando este está legalmente amparado. Durante esse período, a dívida continuou sendo corrigida por IPCA acrescido de 4% ao ano, independentemente da capacidade de pagamento do Estado ou da situação fiscal. Como o saldo não foi amortizado nem sofreu qualquer abatimento contratual, a aplicação dos juros e da correção monetária gerou crescimento exponencial, resultado do acúmulo de encargos sobre encargos. Trata-se, na prática, de um sistema que reproduz o anatocismo financeiro, ou seja, juros sobre juros, mesmo diante de moratória respaldada por liminar judicial. O efeito foi a elevação automática do estoque sem qualquer contrapartida de benefício para o Estado ou para sua população. É um caso paradigmático de dívida que cresce sozinha, alimentada unicamente pela inércia contratual e pela ausência de renegociação estruturada.

A relação dívida sobre Receita Corrente Líquida chegou a 190% em 2018, recuando para 162,6% em 2024, ainda acima do teto prudencial de 200% da Lei de Responsabilidade Fiscal, apesar de uma melhora gradativa. Cerca de R$ 159,9 bilhões correspondem ao débito com a União, enquanto o restante se refere a instituições financeiras, precatórios, INSS e salários atrasados.

Além da magnitude da dívida, há questionamentos sobre sua legitimidade. Estima-se que um terço do valor refinanciado original referia-se a passivos bancários derivados de operações mal geridas e prejuízos privatizados ao Estado, e que a dívida já cresceu mesmo após o pagamento de bilhões em juros e amortizações. De 1998 a 2021, Minas pagou R$ 45,8 bilhões apenas em serviços da dívida e, mesmo assim, o estoque aumentou de R$ 14,9 bilhões para R$ 165 bilhões. A Auditoria Cidadã da Dívida identificou práticas de anatocismo e desequilíbrio na composição dos contratos, criticando a cobrança contínua de juros sobre juros, que afronta inclusive o texto constitucional.

Em contexto histórico, Minas já enfrentou crises fiscais semelhantes. No início dos anos 2000, sob Aécio Neves, foi implementado o chamado “Choque de Gestão”, com corte de secretarias, contenção de despesas, ajuste na cobrança do ICMS e racionalização da estrutura administrativa. De 2003 a 2006, a relação dívida/receita caiu de 263% para 189%, mas esse ajuste estrutural não evitou a reincidência da dívida nas décadas seguintes, evidenciando que soluções pontuais não bastam sem uma reestruturação contratual real.

Em reação, Minas aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal em 2024, com planos de congelamento de concursos e privatizações, e migrou no final do mesmo ano para o Programa de Pleno Pagamento da Dívida dos Estados, que permite abatimento de juros e reestruturação federalizante de ativos como Copasa e Cemig. Embora alivie o caixa e sinalize responsabilidade, essa estratégia exige uma crítica mais profunda.

A grande aposta da atual gestão tem sido a entrega de ativos públicos como moeda de pagamento da dívida. Ainda que tecnicamente possível, essa política compromete o patrimônio produtivo do Estado. Empresas como Cemig e Copasa são fontes de dividendos recorrentes, empregam milhares de pessoas e atuam em setores estratégicos. Entregá-las à União para abatimento da dívida não altera as causas do problema e equivale a vender o motor do carro para pagar o combustível atrasado. A gestão Zema tem mantido superávits primários e avançado em modernização arrecadatória e digitalização fiscal, mas a solução da dívida requer mais do que disciplina: exige visão institucional.

Há, sim, alternativas concretas para reduzir a dívida sem privatizações em bloco. A primeira é a renegociação do indexador. Substituir o atual IPCA + 4% por um critério atrelado à arrecadação ou ao PIB estadual faria com que a dívida crescesse no mesmo ritmo da capacidade de pagamento do Estado. A segunda é a auditoria profunda da dívida, que já foi iniciada com apoio técnico da Assembleia e da Auditoria Cidadã. Se for comprovado que há encargos indevidos e ilegalidades contratuais, será possível obter abatimento judicialmente validado do estoque. A terceira é a reconfiguração do pacto federativo. Atualmente, a União retém mais de 60% da carga tributária nacional, enquanto os estados ficam com obrigações amplas e receitas restritas. Uma reforma federativa que redistribua receitas de ICMS, FPE e tributos compartilhados pode liberar espaço fiscal para os estados equilibrarem seus passivos.

Outro aspecto estrutural raramente abordado é a excessiva fragmentação municipal de Minas Gerais. Com 853 municípios, o Estado lidera o ranking nacional mesmo sem ter a maior população. A grande maioria dessas cidades não se sustenta sem repasses estaduais e federais. Manter prefeituras com arrecadação inferior ao custeio mínimo da máquina local é fiscalmente insustentável. A redução do número de municípios por meio de fusões controladas, respeitando a identidade regional e a viabilidade técnica, é medida impopular, porém racional. A economia gerada por estruturas administrativas mais enxutas poderia ser redirecionada ao equilíbrio fiscal sem sacrificar serviços públicos.

Portanto, embora o esforço fiscal do governo Zema tenha produzido resultados importantes na organização orçamentária, a política de privatizações como solução da dívida é insuficiente e arriscada. Minas pode e deve explorar outras rotas. A auditoria, a revisão do indexador, a racionalização territorial e a revisão do pacto federativo formam o conjunto mais robusto de soluções estruturais. O passivo não será sanado com medidas pontuais, mas com um novo arranjo de competências e receitas, baseado em justiça fiscal e respeito à autonomia federativa.

A dívida de Minas não é apenas uma questão contábil. É a expressão de um modelo esgotado de federalismo, de má gestão histórica e de passividade institucional frente a contratos onerosos. Enfrentá-la exige mais do que cortes e vendas. Exige coragem política, racionalidade econômica e compromisso com a reforma do próprio Estado.

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João Loyola

João Loyola

Formado em administração pela PUC Minas e em Gestão de Seguros pela ENS, Pós-Graduado em Gestão Estratégia de Seguros pela ENS, é sócio sucessor da Atualiza Seguros, trabalha no programa Minas Livre para Crescer na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de MG e é associado do IFL-BH.

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