Clientelismo: como o poder político distorce a economia
Clientelismo — também referido como capitalismo de laços ou capitalismo de compadrio — descreve um arranjo político-econômico em que resultados de mercado passam a depender significativamente de conexões políticas em vez de competição aberta, inovação e produtividade.
Esse fenômeno está associado a uma estrutura estatal com elevada discricionariedade e um grande poder regulatório da burocracia. Nessa circunstância, as vantagens podem ser concedidas a grupos específicos por meio de regulações direcionadas, barreiras à entrada, subsídio, contratos ou conceções.
Como consequência, intensifica-se a competição através do investimento de recursos em lobbies, alianças políticas, propina, doações para campanha para assegurar esses benefícios estatais.
O resultado é o enfraquecimento da concorrência e a distorção dos preços relativos, com redução do dinamismo econômico, transferência de riqueza e queda do excedente do consumidor, culminando em maior desigualdade.
Muitas críticas à economia de mercado no Brasil parecem, na verdade, críticas a arranjos de capitalismo de compadrio. Em vez de concorrência aberta, observa-se a concessão de subsídios e isenções fiscais a setores já consolidados, criando vantagens artificiais e reduzindo a pressão competitiva. O setor automobilístico ilustra bem esse padrão de favorecimento estatal (LISBOA, 2023; UOL, 2011; CNN BRASIL, 2023; MOTOR1, 2024).
Para ilustrar melhor como o clientelismo opera, vale analisar outro exemplo no Brasil que não envolve necessariamente um benefício direto, como repasses financeiros ou renúncias tributárias, mas que, ainda assim, configura proteção seletiva.
O caso das taxações de importados foi, em essência, um mecanismo de proteção ao setor têxtil, que enfrentava dificuldades para competir no mercado global. Nesse contexto, o governo elevou os custos da concorrência externa ao impor uma tarifa, criando barreiras à entrada e reduzindo a pressão competitiva sobre o setor doméstico – com anuência tanto da esquerda quanto da direita (PANCHER, 2024).
Os exemplos não se limitam apenas a empresas. Os sindicatos também são beneficiários de ajuda governamental. No Brasil, os trabalhadores eram obrigados — até 2017 — a pagar imposto sindical.
Após Michel Temer derrubar essa obrigatoriedade, os sindicatos viram sua arrecadação cair cerca de 98% (PODER360, 2022). O monopólio sindical também é garantido pelo governo (BRASIL, 1988). Isso significa que, mesmo que um trabalhador não se sinta representado pelo sindicato da sua categoria, legalmente, ele é impossibilitado de procurar outro sindicato.
Esses indivíduos ou grupos recebem subsídios, proteção ou algum tipo de ajuda governamental porque são mais capazes de se organizar politicamente e conquistar benefícios por meio do lobby ou pressão. Enquanto isso, outros agentes do setor permanecem concentrados em inovar, reduzir custos e melhorar qualidade e acabam competindo em desvantagem contra quem opera em conluio com o Estado.
Além de concentrar esses benefícios, o clientelismo cria uma redistribuição artificial de riqueza. Ele desvia a alocação de recursos que os consumidores fariam voluntariamente em um livre mercado, redirecionando-os para grupos ou indivíduos escolhidos pelo poder discricionário.
Usando o cenário da taxa de importação sobre o setor têxtil imposta pelo governo Lula, vamos supor que uma camisa fabricada no Brasil tivesse um custo de produção de R$40,00, e que fosse vendida por R$45,00. Esse produtor teria um lucro de R$5,00 por peça. Agora imagine que um produtor estrangeiro fabricasse uma camisa por R$30,00. Esse produtor estrangeiro adiciona a mesma margem de lucro de R$5,00 e vende a camisa no Brasil por R$35,00. Com esse preço, o produtor brasileiro não consegue competir.
O fabricante brasileiro faz lobby junto ao governo e convence os funcionários públicos de que, se a empresa dele fechar, muitas pessoas ficarão desempregadas e isso pode gerar perda de votos. O governo impõe uma taxa de R$15,00 para camisas fabricadas no exterior. Com isso, o valor da camisa chega a R$50,00.
Considere agora os ganhos e perdas: a R$45,00, o fabricante brasileiro de camisas tem um lucro de R$5,00 por unidade vendida. Porém, a perda que o consumidor tem não é o mesmo valor. Antes da tarifa, o consumidor podia comprar a camisa por R$35,00. Com a tarifa imposta pelo governo, ele é obrigado a pagar R$45,00 pelo mesmo produto. Enquanto o produtor brasileiro tem um ganho de R$5,00, os consumidores — que são impedidos de comprar um produto mais barato por conta da tarifa — perdem R$10,00 por camisa. Nota: a perda líquida é um pouco maior. Não estamos contando o peso morto pelas trocas que não acontecem porque consumidores que não valorizam a camisa entre R$35,00 e R$45,00 deixam de comprá-la.
Isso é exatamente o que Adam Smith nos ensinou há quase 250 anos quando escreveu, em sua obra clássica A Riqueza das Nações, sobre o protecionismo:
“Os regulamentos lhes proporcionam, outrossim, segurança contra a concorrência estrangeira. Em última análise, a elevação dos preços provocada por ambos é paga pelos proprietários de terras, pelos arrendatários e pelos trabalhadores do campo, que raramente têm oposto à formação desses monopólios.” (SMITH, 2023, p. 128)
O que o estamento faz é usar sua discricionariedade para desviar recursos da sociedade para um grupo privilegiado. O que o clientelismo faz é criar privilégios.
Apesar de o termo “privilegiado” hoje em dia ser usado para qualquer pessoa que seja rica ou tenha propriedade, na verdade, o termo era usado no passado para pessoas que tinham propriedades fundiárias reservadas ao grupo da nobreza. Hoje, mesmo as pessoas que conquistaram sua riqueza com muito esforço e suor e sem nenhuma influência política são tratadas como privilegiadas. A riqueza não é sinônimo de relação com o poder político.
Uma economia livre não conta com esse problema, pois, ao contrário do estamento burocrático e dos políticos, as pessoas gastam seu próprio dinheiro, o que cria um incentivo muito poderoso para usá-lo com cuidado. O poder político obriga você a usar o seu dinheiro da forma que ele acha melhor. Foi isso que Milton Friedman nos explicou sobre as quatro formas de gastar dinheiro:
“(I) gastar o próprio dinheiro consigo mesmo — onde há cuidado tanto com o custo quanto com a qualidade; (II) gastar o próprio dinheiro com outros — há controle de custo, mas menos preocupação com a utilidade para o beneficiário; (III) gastar o dinheiro dos outros consigo mesmo — busca-se qualidade, mas sem preocupação com preço; e (IV) gastar o dinheiro dos outros com outros — onde não há incentivos nem para economizar nem para acertar na qualidade. Esse último tipo é o que predomina em políticas públicas e gera maior desperdício.”
(FRIEDMAN e FRIEDMAN, 2023, p. 177).
O poder econômico é baseado na riqueza, mas isso não significa que ela pode obrigar qualquer um a fazer qualquer coisa. Uma empresa grande e rica pode ficar em péssima situação quando muitos clientes ficam insatisfeitos. Isso faz com que essa empresa tenha um forte incentivo para atender melhor a seus clientes.
Uma economia livre é dinâmica por definição — os gostos e preferências estão sempre mudando —, e isso faz com que existam recursos procurando o melhor uso. A destruição criativa permite que o evolucionismo seja uma arma poderosa contra o poder econômico.
O poder político, por outro lado, é coercitivo. O governo pode tirar sua casa de você — literalmente. Foi isso o que aconteceu nos EUA no caso Kelo v. City of New London (INSTITUTE FOR JUSTICE, 2025).
Susette Kelo foi desapropriada pelo governo para que a área fosse usada para um projeto de “revitalização urbana” que incluía a construção de um complexo empresarial da Pfizer. Por mais dinheiro que a empresa pudesse ter, ela não poderia ter obrigado Kelo a vender. O único caminho seria um acordo voluntário. Como ela recusou, o governo utilizou seu poder político para expropriá-la, alegando interesse público. Ainda por cima, a empresa recebeu uma generosa isenção fiscal.
Esse caso nos EUA mostra como o lobby pode ser uma forma de clientelismo. Isso, porém, não significa que todo lobby seja, por si só, algo ruim. O lobby que busca convencer autoridades do governo a conceder algum tipo de privilégio — como regulamentação específica, subsídio, isenção fiscal ou barreira protecionista — configura os casos típicos de rent-seeking (busca por renda). Por outro lado, lobbies que têm o objetivo de reduzir poder do governo, derrubar barreiras protecionistas ou aumentar a liberdade de mercado — como a Frente pelo Livre Mercado faz — podem ser vistos como algo positivo.
Esse tipo de lobby tende a proteger o Estado de Direito e os direitos de propriedade e a limitar subsídios, barreiras protecionistas e impostos. Infelizmente, casos assim são raros. Isso acontece porque, em mercados mais competitivos, os benefícios são dispersos, ou seja, muitos ganham, mas individualmente de forma modesta. Como esses ganhos são diluídos por toda a sociedade — e os consumidores são um grupo pouco organizado —, o incentivo para fazer lobby é baixo.
Por outro lado, o clientelismo beneficia pequenos grupos com ganhos significativos, criando um forte incentivo para buscar apoio junto ao estamento burocrático. Muitos acreditam que a regulação serve para conter abusos e promover justiça econômica. No entanto, como George Stigler nos mostrou em seu artigo The Theory of Economic Regulation (STIGLER, 1971), As regulações frequentemente são capturadas por grupos de interesses e passam a funcionar como mecanismo de proteção contra concorrência, em vez de instrumento de defesa do consumidor.
A única forma de acabar com — ou ao menos mitigar — o clientelismo é expandindo a liberdade econômica e reduzindo o grau de interferência que o governo pode ter na economia. Isso porque o problema central não é a existência de poder econômico ou de riqueza em si, mas a fusão entre poder político e poder econômico.
Em um mercado relativamente livre, o poder econômico é disciplinado por mecanismos de saída e contestação: consumidores podem trocar de fornecedor, concorrentes podem inovar, preços e lucros são pressionados por alternativas reais. Trata-se de um poder essencialmente condicionado à aprovação do público e sustentado por trocas voluntárias. Já o poder político é de natureza distinta: ele é coercitivo, opera por regras obrigatórias e não enfrenta concorrência direta equivalente às do mercado.
Desse modo, a regulação tende a fracassar não apenas por falhas técnicas de desenho institucional, mas por razões estruturais. A assimetria de informação entre Estado e setor regulado, a racional ignorância do público, o cálculo eleitoral de curto prazo e os incentivos burocráticos à expansão de poder e orçamento criam um ambiente propício para o rent-seeking.
Por isso, uma agenda consistente de combate ao clientelismo precisa priorizar regras gerais e impessoais, redução de subsídios e proteções setoriais, simplificação regulatória e tributária e limites claros à discricionariedade estatal. Quanto menor a capacidade do governo de distribuir privilégios, menor o incentivo para a busca de renda política.
Referências
LISBOA, Marcos. Marcos Lisboa detona subsídios à indústria automobilística. Entrevista concedida a Lucas FS. YouTube, 25 nov. 2023. Disponível em: Youtube. Acesso em: 5 dez. 2025.
UOL. Governo é o maior financiador das multinacionais do carro no Brasil. UOL Carros, 5 dez. 2011. Disponível em: https://www.uol.com.br/carros/noticias/redacao/2011/12/05/governo-e-o-maior-financiador-das-multinacionais-do-carro-no-brasil.htm. Acesso em: 5 dez. 2025.
CNN BRASIL. Governo lança novo regime automotivo e prevê quase R$ 20 bi em incentivos até 2028. CNN Brasil, 30 maio 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/mercado/governo-lanca-novo-regime-automotivo-e-preve-quase-r-20-bi-em-incentivos-ate-2028/. Acesso em: 5 dez. 2025.
MOTOR1. Incentivos à indústria não evitaram alta de preços dos carros no Brasil. Motor1, 10 jan. 2024. Disponível em: https://motor1.uol.com.br/features/704653/industria-incentivos-precos-carros/. Acesso em: 5 dez. 2025.
PANCHER, Sam. Deputado José Guimarães, do PT: “Tem acordo, presidente. Por que não vota simbólico?”. X (antigo Twitter), 2024. Vídeo. Disponível em: https://x.com/SamPancher/status/1795617688221565213. Acesso em: 5 dez. 2025.
PODER360. Contribuição sindical despenca depois de reforma trabalhista. Poder360, 3 jul. 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/contribuicao-sindical-despenca-depois-de-reforma-trabalhista/. Acesso em: 5 dez. 2025.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Acesso em: 5 dez. 2025.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: uma investigação sobre sua natureza e suas causas. Tradução e notas de André Gonçalves Fernandes. São Paulo: Vide Editorial, 2023.
FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Liberdade de escolher. Tradução de Lígia Filgueiras. 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2023.
INSTITUTE FOR JUSTICE. Kelo v. City of New London. Disponível em: https://ij.org/case/kelo/. Acesso em: 5 dez. 2025.
STIGLER, George J. The theory of economic regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, v. 2, n. 1, p. 3–21, 1971.
*Adriano Dorta é estudante de economia, com foco de pesquisa em escolha pública e economia política.



