Carta de Pero Vaz de Caminha — A fundação traída ou o Brasil que ainda pode ser?

Print Friendly, PDF & Email

A Carta de Pero Vaz de Caminha não é apenas o primeiro registro do Brasil; é também um espelho inaugural — refletindo tanto a promessa contida na aurora da nossa história quanto os paradoxos que nos moldaram. Caminha não descreve simplesmente uma terra — ele apresenta um cenário de possibilidades: uma natureza exuberante, um povo pacífico, uma vastidão aberta à construção. Em suas palavras: “Esta terra, Senhor, me parece, da mais sadia, até agora, de todas, e nela, em se plantando, tudo dá.”

É uma frase que ainda hoje floresce — e também fere. Afinal, se a terra dava tudo, o que fizemos com esse tudo? Em vez de colheitas de autonomia, cultivamos a dependência. Em vez de empreendedores, formamos súditos do Estado. A carta é uma janela para um Brasil virgem, onde a liberdade ainda estava crua, mas latente. O futuro, porém, preferiu a sombra das tutelas estatais ao sol da responsabilidade individual. Como Friedrich Hayek advertiria séculos depois: ao se ceder à ilusão do planejamento central, corre-se o risco de substituir a liberdade viva por estruturas rígidas, que sufocam a criatividade e a ordem espontânea da sociedade.

O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, já apontava essa dicotomia entre o que poderíamos ter sido e o que nos tornamos: “O Brasil não teve propriamente uma formação orgânica de sociedade. Desde o princípio, foi um país administrado. A liberdade teve pouca oportunidade.” Hayek, em O Caminho da Servidão, reforça essa crítica ao denunciar os efeitos corrosivos de um Estado que, ao tentar desenhar a sociedade segundo planos racionais, destrói justamente o tecido de relações livres e descentralizadas que permite a prosperidade verdadeira. A ordem social — como a econômica — não se constrói de cima para baixo, mas emerge das ações livres dos indivíduos.

Ainda assim, é preciso reconhecer que o Estado, em sua função legítima, tem papel fundamental. Tanto Locke quanto Hayek não defendiam um anarquismo utópico, mas sim um Estado limitado, que proteja direitos, garanta contratos, mantenha a ordem e atue como guardião da liberdade e não seu substituto. O problema, portanto, não é o Estado em si, mas sua hipertrofia, sua captura por interesses particulares e sua tendência constante de ocupar espaços que deveriam pertencer à sociedade civil.

Caminha via um mundo em que a natureza oferecia sem exigir — mas a dignidade estava justamente em responder a esse oferecimento com trabalho. A frase “em se plantando, tudo dá” pode ser lida sob a ótica de John Locke, que afirmava que o trabalho transforma a natureza e gera direito de propriedade. Para Locke, a terra em estado bruto é uma promessa — mas só o esforço humano a torna legítima posse. A propriedade, para ele, nasce quando alguém mistura seu trabalho à terra. Nesse sentido, a carta de Caminha também é um chamado: não basta que a terra seja fértil — é preciso cultivá-la com responsabilidade. O Brasil, ao longo dos séculos, confundiu fertilidade com facilidade e liberdade com abandono.

Essa confusão talvez seja a raiz da nossa dificuldade em sustentar instituições livres. Hayek já advertia que a liberdade exige virtude — ela precisa ser aprendida, cultivada e sustentada. Talvez por isso, quando a liberdade bate à porta, muitos prefiram a segurança paternalista do Estado à incerteza criativa do risco. Locke, por sua vez, também alertava: quando o governo deixa de proteger a propriedade e a liberdade de seus cidadãos, ele perde sua legitimidade — porque a autoridade do Estado só se justifica pelo consentimento dos governados e pela garantia dos seus direitos naturais.

A narrativa de Caminha é carregada de espanto e leveza. Ao descrever os indígenas, ele não impõe um juízo brutal, mas observa com uma curiosidade quase lírica: “São pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrir…” É como se encontrasse uma humanidade nua não só no corpo, mas na alma — despida de artifícios, de vícios institucionais, de sistemas corruptos. Um povo sem reis, sem leis, sem grades. O contraste com o Brasil moderno é gritante: de uma terra sem guerra, criamos uma nação em permanente conflito interno, onde as diferenças viraram trincheiras, e a política, um campo de batalha de narrativas e ressentimentos. Hayek chamaria isso de consequência da engenharia social — o desejo de moldar sociedades à força, ignorando seus fluxos naturais, acaba por acirrar divisões e comprometer a ordem espontânea que nasce da liberdade responsável.

O crítico literário Antonio Candido, ainda que de uma perspectiva distinta, reconheceu a beleza inaugural da carta: “Caminha inaugura não só a nossa prosa, mas o nosso olhar. Ele vê, descreve e interpreta com uma honestidade rara. Sua carta é o primeiro texto da nossa modernidade.” Mas o que foi feito desse olhar honesto? Com o tempo, cedeu espaço ao cinismo, ao distanciamento entre Estado e povo, entre promessa e entrega.

Caminha também observa que os povos originários não tinham noção de propriedade privada — “Não têm casas nem moradias certas…” Para o pensamento liberal, tanto para Locke quanto para Hayek, a propriedade é base da liberdade. Locke via nela a extensão da própria pessoa, e Hayek a compreendia como o eixo a partir do qual emergem os incentivos, as trocas livres e o desenvolvimento social. No entanto, ao longo da história, o Brasil jamais consolidou uma cultura de responsabilidade individual sobre o que se possui. Ao contrário: o patrimonialismo — essa confusão entre o que é do Estado e o que é de quem está no poder — tornou-se marca registrada da política nacional. Quando o que é de todos parece ser de ninguém, instala-se o descuido, a corrupção, a indiferença.

O filósofo Luiz Felipe Pondé já comentou que a carta é também uma espécie de “poema sobre a ingenuidade da origem” e que o Brasil é um país que “se apaixona pela inocência, mas despreza o mérito”. Essa paixão pela origem acabou se tornando um entrave para o amadurecimento. Hayek, por sua vez, apontaria que esse desprezo pelo mérito nasce da incompreensão do funcionamento das ordens livres — onde o mérito não é um título concedido por um comitê, mas o resultado não planejado da ação eficaz dentro de um sistema aberto de oportunidades.

A própria carta é um exemplo de zelo, método e hierarquia. Caminha escreve como um funcionário real consciente de seu papel, não como um aventureiro. Em contraste, o Brasil moderno tem uma burocracia gigante — mas sem espírito público. “A feição dela, Senhor, é tal qual vossa Alteza poderá mandar ver por uma pintura…” O servidor Caminha se preocupa em prestar contas, enquanto hoje presta-se culto ao improviso e ao privilégio. A responsabilidade de servir deu lugar à busca por estabilidade sem contrapartida, ao corporativismo descolado da nação. Hayek diria que isso é o que acontece quando se substitui o mérito individual por estruturas estatais que distribuem favores e desincentivam a iniciativa.

A Carta de Caminha é, portanto, uma bússola virada para o futuro, ainda que escrita no alvorecer do passado. É o retrato de um país que poderia ter sido erguido sobre os alicerces da liberdade, da propriedade, do mérito e da dignidade do trabalho — como Locke sonhava e Hayek defendia -, mas que, ao invés disso, percorreu o atalho da tutela estatal, da substituição do cidadão pelo dependente, da esperança trocada por assistencialismo.

No entanto, a carta continua de pé — como um pergaminho silencioso que sussurra: a semente da liberdade já esteve entre nós. Ainda está. Basta rasgar as amarras do paternalismo, podar as árvores do clientelismo e permitir que a luz da responsabilidade individual — tão cara a Locke e Hayek — volte a tocar o solo fértil da nossa história. Afinal, a ordem mais justa não se impõe — ela brota quando o indivíduo é livre para escolher, criar e florescer, e quando o Estado sabe onde termina seu papel.

*Priscilla Dalledone é psicóloga clínica com base na Logoterapia, bacharela e licenciada em Letras, leitora voraz e escritora por vocação. Aprofunda-se na escuta e na linguagem como caminhos de sentido. Membro prospect do IFL-Brasília.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal trabalha para promover a pesquisa, a produção e a divulgação de ideias, teorias e conceitos sobre as vantagens de uma sociedade baseada: no Estado de direito, no plano jurídico; na democracia representativa, no plano político; na economia de mercado, no plano econômico; na descentralização do poder, no plano administrativo.

Deixe uma resposta

Pular para o conteúdo