A Terra Prometida: entre a utopia da reforma agrária e a realidade política
O novo documentário da Brasil Paralelo, MST: A Terra Prometida, propõe uma inversão incômoda: desconstruir a imagem tradicionalmente idealizada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, revelando o que seria seu “lado B” — menos utópico, mais estratégico e frequentemente contraditório.
Com estrutura narrativa direta e estética de denúncia, o filme sugere que o MST não atua, como afirma, pela democratização da terra improdutiva, mas sim como um sistema de poder organizado. O movimento atrai pessoas em situação de vulnerabilidade com promessas de acesso à terra e dignidade, para depois mantê-las em condição de dependência e informalidade. Entre os aspectos mais sensíveis apontados, estão a ausência de registro de propriedade para os assentados, a venda de insumos a preços elevados dentro do próprio movimento e a utilização de idosos e crianças na linha de frente das invasões — ou, como prefere o vocabulário militante, “ações de resistência”.
A estrutura narrativa remete de imediato a A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Assim como na distopia literária, na qual o ideal coletivo dá lugar à construção de uma nova tirania, o documentário sugere que o MST teria transformado seu discurso libertador em instrumento de controle. Todos são iguais, mas continuam sem terra — e dependentes de quem promete entregá-la.
Um ponto delicado é a atuação do INCRA durante os governos de esquerda. Sob gestões alinhadas ideologicamente ao MST, o órgão teria atuado como um braço facilitador do movimento, agindo com parcialidade na destinação de terras e prejudicando, inclusive, proprietários de áreas produtivas, que se viram alvos de processos ou desapropriações politicamente orientadas. Esse fator contribui para a percepção de um sistema institucional que favorece o movimento em detrimento da legalidade agrária e da segurança jurídica.
Curiosamente, o próprio documentário reconhece que a luta pela reforma agrária no Brasil é muito mais antiga que o MST. Trata-se de um problema estrutural, enraizado desde o período colonial, muito anterior à fundação do movimento. Por isso, soa como uma oportunidade desperdiçada o fato de que, diante da recusa do MST e do INCRA em fornecer declarações, a produção não tenha recorrido a pensadores de esquerda, acadêmicos ou estudiosos críticos ao agronegócio para construir um contraponto mais robusto. Isso teria enriquecido a narrativa, ampliado a credibilidade da análise e oferecido ao público um panorama mais completo — permitindo, inclusive, que a crítica feita ao MST fosse percebida não como simples oposição ideológica, mas como parte de um debate honesto e plural sobre a questão agrária no Brasil.
De acordo com o próprio documentário, há um argumento central que merece destaque: a reforma agrária, tal como era concebida nas décadas passadas — baseada na divisão de grandes propriedades para pequenos agricultores —, já não faz mais sentido nos tempos atuais. O raciocínio se sustenta na transformação profunda da lógica produtiva no campo, altamente mecanizada, tecnológica e integrada ao mercado global. Essa tese dialoga diretamente com análises de pensadores como Zander Navarro, sociólogo rural brasileiro, que há anos aponta que o modelo clássico de reforma agrária perdeu eficácia prática diante da modernização do agronegócio e das transformações socioeconômicas no meio rural. Segundo ele, a simples distribuição de terras, sem infraestrutura, assistência técnica, crédito, mercado e capacitação, não garante, por si só, a emancipação dos assentados nem a viabilidade econômica dos projetos.
Esse ponto não invalida a discussão sobre desigualdade fundiária, mas desloca o debate para outros parâmetros — como inclusão produtiva, acesso à tecnologia, desenvolvimento sustentável e políticas públicas mais modernas, voltadas para uma nova configuração do campo. É nesse contexto que o documentário sustenta a ideia de que o MST, ao insistir em um modelo ultrapassado de ocupação e resistência, estaria menos interessado na produção agrícola e mais na perpetuação do próprio aparato político e econômico do movimento.
Vale destacar o pensamento de Louis Althusser, filósofo marxista, sobre a necessidade de todo aparato ideológico produzir um inimigo comum como forma de manter a coesão interna e justificar suas ações externas. No caso do MST, esse inimigo é o agronegócio — apresentado, no discurso da liderança, como figura absoluta do mal: explorador, latifundiário, destruidor da terra e da justiça. A existência desse antagonista é crucial para a manutenção da narrativa de luta: sem o inimigo, a guerra perde sentido — e, com ela, a autoridade dos que se dizem generais da causa. Esse mecanismo é reforçado não apenas pela oposição ideológica, mas também pela linguagem cuidadosamente moldada. Há, portanto, uma camada discursiva que atua não apenas para mobilizar os assentados, mas para construir uma lógica que desautoriza qualquer crítica: quem questiona é automaticamente associado ao lado inimigo.
A Terra Prometida não é neutro nem tenta ser, mas cumpre, com suas próprias ferramentas, um papel que faltava no debate público: tensionar a narrativa oficial do MST, levantar perguntas incômodas e abrir espaço para um olhar mais realista — ainda que parcial — sobre os bastidores do movimento.
Talvez esse seja seu maior mérito: lembrar que, como já ensinava Orwell, nem toda revolução é libertadora quando os novos porcos sobem à mesa e que, às vezes, o sonho da terra prometida permanece apenas uma promessa…
*Priscilla Dalledone é bacharela e licenciada em Letras-Português pela Universidade de Brasília (2012). É também psicóloga formada pelo Centro Universitário IESB (2023) e logoterapeuta pela Faculdade Ítalo Brasileira (2024). Atuou como professora de Língua Portuguesa por 13 anos (2009–2022), período no qual desenvolveu um profundo conhecimento em literatura, escrita e gramática. Co-fundadora da empresa Galt-Vestibulares (2015), atualmente dedica-se à clínica psicológica, com base na abordagem da Logoterapia. É membro prospect do Instituto de Formação de Líderes de Brasília (IFL Brasília), ampliando sua atuação em projetos de impacto social e desenvolvimento humano.