A Politeia tupiniquim
Como A República de Platão parece ter sido erroneamente tomada como manual por políticos brasileiros, eleitos ou não
Ao se aventurar pelas páginas de A República, de Platão, em que uma grande reflexão se inicia ao tentar responder à pergunta “O que é justiça?” o leitor é seduzido pela proposta de uma sociedade ideal, governada por reis filósofos, onde cada cidadão desempenha o papel que melhor se adequa às suas capacidades naturais e os governantes virtuosos dispõem de ferramentas de perpetuação da virtude da alma que se reflete na virtude social. No entanto, apesar de alguns políticos brasileiros não terem notado, em uma leitura mais criteriosa, é perceptível que esta obra não é um manual para a construção de uma utopia política, mas sim um tratado repleto de ironias e alegorias que, tragicamente, encontram paralelos significativos com a realidade política brasileira atual.
Platão, através do diálogo de Sócrates, questiona a essência da justiça, mas o faz com um tom sutilmente satírico em que espelha a sociedade ideal à virtude das almas de seus integrantes e, principalmente, gestores. O autor, porém, deixa claro no Livro VI da obra que essa sociedade ideal depende de condições improváveis de coincidir na realidade. A proposta de uma cidade governada por filósofos, onde os guardiões são despidos de bens pessoais para evitar corrupção e onde a educação é rígida e focada nas virtudes é tão sedutora que parece, à primeira vista, uma solução para os males da política atual. No entanto, a ideia de que apenas os filósofos deveriam governar é uma ironia sutil sobre a impraticabilidade de tal sistema na realidade, onde a humanidade é, por natureza, imperfeita e diversa, especialmente em sociedades que carecem de virtudes. Essa impraticabilidade é muito bem ilustrada na narração do “mito da caverna”.
A Alegoria da Caverna, uma das passagens mais famosas da República, é frequentemente vista como um chamado à educação e iluminação. No entanto, é também um alerta sobre a dificuldade e a resistência à mudança e ao conhecimento verdadeiro. Esse cenário é particularmente irônico quando comparado ao Brasil, onde governantes e políticos que buscam votos frequentemente usam a “educação” como um slogan político enquanto, na prática, a educação é mal gerida e não apenas não atende às necessidades de uma sociedade que queira se tornar esclarecida e justa como é abertamente manipuladora, visando a formar não almas virtuosas, mas militantes apaixonados. Ao mesmo tempo, políticos que não buscam votos se dizem portadores do “iluminismo” querendo “mover a história”, ainda que contrariando os fundamentos dos poderes que constituem seus cargos.
O próprio conceito de justiça na obra é discutido de forma tão abstrata que pode ser visto como uma crítica ao uso da justiça como um instrumento político. No Brasil, é pior ainda; o Poder Judiciário é chamado de “Justiça”, confundindo o significado da instituição com o do conceito, fazendo com que a justiça muitas vezes seja percebida como um mero campo de batalha para interesses políticos, onde a aplicação da lei varia conforme a influência e o poder dos envolvidos e, mais recentemente, conforme o alinhamento ideológico do réu. Hoje, no Brasil, consolidou-se a “justiça” de Polemarco ao início da obra: “significa fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos”. Platão assistiria com horror a esse cenário.
O autor também sugere a censura nas artes e na educação para moldar os líderes de uma sociedade perfeita para que eles pudessem ser educados unicamente nos valores da coragem, temperança e justiça. Essa censura se faria necessária nas obras a que os líderes em formação tivessem acesso, pois, na Odisseia, por exemplo, os deuses teriam propensões a serem caprichosos, vingativos e até injustos, sendo assim não modelos, mas obstáculos ao atingimento do estado de contemplação do “bem” pelos líderes em formação. Dessa forma, a censura não é para ele apenas uma forma de controle estatal, mas uma tentativa de alinhar a educação com a formação de uma alma justa, necessária ao bom governante, onde a razão governa os impulsos. No Brasil, porém, por mais iluminados que se julguem nossos censores, essa censura é distorcida, visando apenas ao controle sobre as narrativas políticas. Isso porque Platão dá ao rei filósofo uma arma poderosa que, nas mãos erradas, se torna apenas uma mordaça aos críticos do regime estabelecido. A ironia da obra, aí, se dá pelo fato de que uma sociedade corrompida vai usar os instrumentos de que a sociedade virtuosa dispõe justamente para evitar que a virtude se instale, criando um ciclo vicioso de poderes que atendem unicamente a interesses particulares de seus executores.
A estrutura de governo proposta por Platão, com produtores, auxiliares e filósofos reis, demonstra um “mundo ideal” de uma sociedade esclarecida e pautada em valores sólidos, de forma que, assim como se constrói uma pirâmide dos modelos ideais de governo, que vai preferencialmente da mais concentrada para a menos concentrada, com a monarquia na ponta, a aristocracia em seguida e o governo popular na sequência, forma-se também uma pirâmide invertida, espelhada, correspondente à versão corrompida dessa pirâmide virtuosa, aplicável às sociedades carentes dessas virtudes que levam à prosperidade, com a tirania na ponta inferior, a oligarquia no centro e a democracia corrompida na base.
Figura 1 – Representação gráfica das estruturas de organização social
No Brasil de hoje, não me parece claro em qual andar da pirâmide estamos, dada a complexidade da estrutura social moderna. O que me parece certo é que estamos na pirâmide invertida, em que o poder até pode variar em concentração, das mãos de tiranos que extrapolam as limitações constitucionais dos cargos que ocupam, passando por oligarcas que usam do aparato público para benefício privado, até a diluição “democrática” de poder em uma sociedade despreparada e carente de virtudes, que comumente aplaude o errado e escarnece do correto, em que a cultura da malandragem, do hedonismo e do “levar vantagem” se sobrepõe aos valores básicos da virtude. Assim, o Brasil em geral adota harmonicamente diferentes formas de se organizar socialmente, mas sempre transitando na pirâmide invertida, movido por agentes que têm, individualmente, almas cheias de vícios em lugar de virtudes que se refletem em uma sociedade igualmente carente de bons valores.
Na cidade ideal platônica, o uso de instrumentos como a censura reflete a autodisciplina da alma, onde a razão governa os desejos. No Brasil, a ausência dessa harmonia nos líderes, que manipulam narrativas para seus próprios interesses, revela uma “alma coletiva” desordenada, onde a justiça é sacrificada por interesses particulares, impulsos momentâneos e correntes políticas em busca de poder pelo poder.
Aqui, onde a política frequentemente se desvia das noções de justiça e bem comum em favor de interesses particulares, a obra de Platão serve como um espelho que reflete não a perfeição, mas a imperfeição e a complexidade da governança humana. A verdadeira lição de A República pode ser que a busca pela justiça e pela sociedade ideal é uma tarefa contínua e crítica e que qualquer tentativa de impor um utópico sistema “perfeito” sem reconhecer a natureza humana é, em si, uma grande ironia que terminará por causar mais prejuízos do que benefícios.
*Alexandre Sorensen é formado em Ciências Contábeis, é empresário e consultor em Finanças Corporativas e Desenvolvimento Econômico, e é associado alumni do Instituto Liderança e Liberdade de Joinville.