A farsa da governança global
Em declarações que antecederam a cúpula do G7, realizada no início desta semana em Kananaski, na província de Alberta, no Canadá, o presidente do Brasil, com sua habitual arrogância, voltou a defender a falsa panaceia do governo mundial, sob a alegação de que “o mundo não pode mais ser governado por um sistema multilateral que exclui a maioria”. Não foi a primeira e certamente não terá sido a última vez que ele insiste nessa falação. O discurso da governança global, quase sempre condimentado por algum apelo à promoção da paz e à defesa do meio ambiente e de minorias, é mesmo sedutor e pode iludir facilmente ouvidos ingênuos ou incautos, mas a verdade é que essa ideia é um autêntico cavalo de Tróia — cuidadosamente enfeitado na aparência por uma imaginária ordem mundial repleta de solidariedade e cooperação, mas que esconde propósitos de centralização autoritária e desprezo pela soberania das nações, pela diversidade dos povos e pelas liberdades individuais.
Governança global, ou Nova Ordem Mundial, ou Agenda 2030, ou globalismo, ou qualquer outra denominação atraente e enganadora como essas, não passa de um projeto de engenharia social para a criação de uma estrutura supranacional de controle político, econômico e social sob o pretexto ardiloso de solucionar problemas “globais”, que se manifesta por intermédio de organismos como a ONU, a OMS, o FMI, o Banco Mundial, a Otan, a OEA etc. e diversas tribunas como G20, COP30, Fórum Econômico Mundial e outras, que propõem padrões universais, sejam econômicos, culturais, políticos, ambientais, sanitários, sejam digitais, aplicáveis a todos os países e por eles respeitados. Se implantada, ela transfere decisões dos cidadãos e de seus representantes eleitos para burocracias internacionais que não recebem nenhum voto e são acintosamente conduzidas por agendas ideológicas e interesses geopolíticos, como acontece quando a OMS propõe tratados obrigatórios, a ONU sugere um imposto mundial visando à redistribuição global de riquezas, os fanáticos do clima querem impor restrições estapafúrdias a agricultores, o blá-blá-blá identitário e toda uma agenda cultural que tenta decretar valores alheios ao Ocidente.
Por isso, é preocupante que governantes eleitos defendam um governo global e, quando isso acontece, cabe perfeitamente perguntar quem é o que, ao fim e ao cabo, governará esses governantes. A governança mundial é a mais recente utopia que, com pretextos alegadamente humanitários, como paz, ordem e igualdade, abre os portões de uma civilização combalida pelo relativismo moral para uma nova tirania, sem voto e agora sem rosto. É uma forma de centralização autoritária fantasiada de cooperação, que molesta a soberania das nações, ignora a diversidade dos povos e ameaça as liberdades individuais.
É natural que os socialistas do século 21 tenham encampado a ideia da governança global, já que desde as suas origens o socialismo sempre foi internacionalista, em boa parte porque sua visão da luta de classes é universal, sem pátria, como sugere a famosa frase do Manifesto Comunista conclamando os proletários de todos os países à união, uma vez que para os velhos socialistas o capitalismo era um sistema global e, portanto, a revolução socialista também teria que exceder fronteiras nacionais, vistas como instituições burguesas e, portanto, desprezíveis. Enxergavam o nacionalismo como uma ferramenta das elites para dividir os trabalhadores, ao impedi-los de perceber os interesses de classe comuns com os operários de outras nações.
Não foi por outra razão que surgiram, desde o século 19, organizações como a Primeira Internacional (1864), para promover a união dos operários de diversos países, a Segunda Internacional (1889), que enfatizou que as “lutas” dos trabalhadores eram universais e, ainda, a Terceira Internacional (1919), com o objetivo de espalhar o comunismo pelo planeta. Também não é por outro motivo que não se tem conhecimento de nenhum “hino internacional” liberal ou conservador.
Para esses admiradores de ditaduras, portanto, o internacionalismo sempre foi uma estratégia para apoiar movimentos revolucionários e financiar partidos e grupos de guerrilhas no mundo, em contraposição ao chamado imperialismo ocidental e, como sempre, sob a máscara de uma pretensa solidariedade entre países “oprimidos” do chamado Terceiro Mundo. Não há motivo para nenhum espanto, portanto, quando o presidente do Brasil e seus pares socialistas de outros países apoiam abertamente os “interesses do Sul Global” e não têm qualquer pudor de submeter suas nações a entidades supranacionais em temas ambientais, identitários, migratórios, de controle dos fluxos de informação e outros.
A retórica alegórica
Com toda a franqueza, essa coisa de governança global é uma alegoria, um artifício para discorrer sobre temas mediante a instilação de significados diferentes dos reais. É uma falsa narrativa, como tantas outras que vêm contaminando o mundo, uma ideia que costuma ser vendida com a retórica do “bem comum da humanidade”, mas que, na prática, não passa de fachada para tentar concentrar poder e deteriorar as liberdades individuais. Um mundo sem fronteiras pode parecer até poético, mas um mundo sem restrições à concentração de poder com toda a certeza é uma porta escancarada para a tirania, ao dar vida a um monstro que nem Hobbes poderia imaginar — um Superleviatã. Que tal colocarmos alguns fatos para desnudar a alegoria retórica globalista?
A primeira crítica a essa utopia surge da própria natureza do homem: tradições, cultura e demais instituições locais são ordens espontâneas que não podem ser subordinadas a um comando centralizado que, por definição, desconhece suas raízes e fontes seculares. Um governo mundial estaria condenado a ignorar as especificidades culturais, idiomáticas e morais de cada país, pondo em seu lugar princípios genéricos e abstratos oriundos de uma engenharia social imposta por elites portadoras de uma ideologia que as fazem se considerarem moralmente superiores às pessoas comuns.
O segundo fato é que, quanto mais remoto é o poder, mais difícil é controlá-lo. Ou seja, um governo mundial se situaria inevitavelmente bem distante dos cidadãos, seria incapaz de ter o conhecimento de seus desejos, aspirações e necessidades, e seria refratário a qualquer pressão democrática, dado que todas as suas decisões partiriam de tecnoburocratas internacionais regiamente pagos e livres do teste das urnas.
O fato número três é que a governança mundial imporia inevitavelmente uma uniformização compulsória, à revelia dos cidadãos mundiais, de políticas diversas, sejam fiscais, tributárias, ambientais, identitárias, sejam sanitárias, que passariam ao largo das realidades econômicas, políticas e culturais de cada país. Um exemplo claríssimo dessa uniformização obrigatória é o da pandemia de covid-19, com a OMS e outras entidades globais massacrando as liberdades e impondo procedimentos autoritários mascarados de “emergência sanitária”. Você duvida que, em um governo global, aquele autoritarismo exibido em 2020 e 2021 seria a regra?
Outra crítica irrefutável é que a centralização política costuma provocar centralização econômica, com todos os efeitos mortíferos para o progresso que isso implica, principalmente de políticas econômicas impostas de cima para baixo. Não é por acaso que a ideia de governo mundial é apoiada por bilionários globais, ONGs internacionalistas e grandes empresas transnacionais, mas jamais por pequenos produtores e trabalhadores locais.
Vade retro!
Em tempos em que a liberdade está ameaçada por censuras digitais, patrulhamento ideológico, restrições à liberdade de expressão e tentativas de reengenharia social, os últimos baluartes da autonomia dos cidadãos continuam sendo a soberania das nações, a democracia com descentralização e limitação de poderes e a liberdade dos indivíduos. A proposta de um governo mundial claramente sinaliza o oposto a esses atributos, pois o que propõe, em nome da ordem e da solidariedade, é um autoritarismo global sem precedentes. Sendo assim, vai contra conquistas que a civilização ocidental conseguiu solidificar a muitos custos ao longo de séculos. Como pode alguém acreditar na eficácia de decisões tomadas por burocratas inalcançáveis, que vivem em redomas sem qualquer responsabilidade perante os cidadãos?
É grave quando um governante de qualquer país usa essa retórica para justificar controle ideológico e padronização de valores. Qualquer pessoa bem informada sabe que a ideia de governo mundial vem acompanhada de propostas de censura global, de combate à “desinformação” e a “discursos de ódio” e de imposição de agendas identitárias, sempre em nome de um impalpável “bem comum” de definição impossível. Se o presidente de um país tem verdadeira fixação pela regulação da internet e pela criação de mecanismos para controlar as redes sociais, não é difícil imaginar o que faria com endosso e aval supranacionais.
Líderes democráticos verdadeiros têm o dever de defender a liberdade e a autonomia de seu país e de seus cidadãos, e por isso é lamentável quando algum deles mostra disposição de abrir mão disso em nome de uma utopia globalista. Mais dramático é sabermos que seus propósitos são ocultos e alinhados mais com os interesses de uma elite transnacional do que com os anseios reais do povo que o elegeu. E é dever de todos os cidadãos conscientes não deixar que o seu destino seja entregue a ninguém e a nenhum órgão ou governo, de qualquer canto do mundo, além deles próprios.
*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.