A direita conservadora e a proteção da cultura
A cultura não é apenas um reflexo da sociedade. É sua matriz simbólica, seu campo de batalha moral, seu laboratório de normas e sua escola informal de valores. Como bem observou o filósofo britânico Roger Scruton, “a cultura forma indivíduos, molda instituições e define a civilização pela qual vale a pena lutar”. O erro mais recorrente das forças liberais e conservadoras ao longo do último século foi o de subestimar a cultura enquanto força estruturante da política e da vida em comum. Quando se abandona o campo simbólico, o espaço é imediatamente ocupado por quem compreende que é ali, e não apenas no Congresso ou nas urnas, que se determina o que pode ou não ser dito, defendido e desejado por uma sociedade.
A esquerda entendeu isso desde o início do século XX. Herdeira do marxismo revolucionário, soube reformular sua estratégia quando o modelo insurrecional fracassou. Antonio Gramsci, preso pelo regime fascista italiano, percebeu que, antes de se tomar o poder do Estado, era necessário conquistar a hegemonia cultural. Segundo ele, quem domina os meios pelos quais a sociedade interpreta o mundo – educação, imprensa, arte, religião – domina também sua política. Essa hegemonia se constrói lenta e silenciosamente, influenciando padrões de pensamento, linguagem e comportamento. A esquerda brasileira assimilou essa lição com eficiência rara. Enquanto partidos e sindicatos travavam batalhas eleitorais e econômicas, intelectuais, artistas e formadores de opinião ocupavam universidades, redações, editoras, salões de arte e até mesmo movimentos religiosos.
Esse domínio não se deu apenas por convicção ideológica, mas também por pragmatismo. A cultura é o canal mais duradouro de transformação. Políticas públicas podem ser revogadas por uma canetada. Um livro, uma canção, uma narrativa ou um filme podem sobreviver séculos, moldando mentes e consolidando consensos. A esquerda investiu nesse poder simbólico com uma paciência estratégica que a direita, especialmente no Brasil, nunca compreendeu plenamente.
No contexto nacional, esse fenômeno foi amplificado por incentivos estatais que acabaram fortalecendo o viés ideológico da produção cultural. A Lei Rouanet, embora concebida como instrumento de democratização do acesso à cultura, tornou-se nos últimos anos um sistema de fomento altamente concentrado, onde os mesmos grupos, artistas e instituições, muitas vezes alinhados a agendas progressistas, receberam os maiores volumes de financiamento. A crítica a esse desequilíbrio não deveria ser contra o princípio do incentivo à cultura, mas contra sua instrumentalização ideológica.
A esquerda também entendeu que grandes conglomerados e bancos são aliados estratégicos, não inimigos automáticos. A ideia romântica de que a esquerda é sempre anticapitalista foi abandonada na prática em favor de uma simbiose entre discurso social e poder econômico. É o caso do Itaú Cultural, do Instituto Alana, do Todos pela Educação e da Fundação Tide Setúbal. Comandadas ou financiadas por membros da elite financeira, essas organizações investem bilhões em educação, arte e comunicação com uma agenda identitária e progressista. Não se trata de mecenato inocente, mas de ocupação racional e planejada do campo cultural com fins normativos. O resultado é que até mesmo escolas privadas e editoras independentes foram, pouco a pouco, absorvidas por essa estética moralizante de esquerda.
Enquanto isso, o campo liberal conservador brasileiro cometeu dois erros simultâneos e complementares. O primeiro foi negligenciar a cultura como frente estratégica. O segundo foi tratá-la como mera expressão de gosto pessoal ou de espontaneidade de mercado. A cultura foi reduzida a “lacração” ou “doutrinação” a ser criticada e não a estrutura civilizacional a ser defendida. O conservadorismo, ao se afastar da cultura, tornou-se cego para a principal razão de sua existência: conservar o que é bom, belo e verdadeiro em uma sociedade. O liberalismo, ao desprezar a importância dos valores compartilhados, tornou-se funcionalmente neutro em relação a qualquer narrativa dominante, inclusive aquelas que corroem a liberdade.
No campo prático, essa omissão se manifestou em três frentes. A primeira foi a ausência de estruturas institucionais dedicadas à produção e difusão cultural: faltam editoras, fundações, centros de arte, prêmios literários, núcleos de pesquisa, escolas de cinema e academias de crítica com viés liberal conservador. A segunda foi a incapacidade de formar e sustentar artistas, pensadores, músicos, escritores e educadores que se identifiquem com esses valores. A terceira foi a recusa em ocupar o espaço já existente, como conselhos de cultura, secretarias municipais, editais públicos e festivais, mesmo quando esses canais são legalmente acessíveis.
É verdade que nos últimos anos surgiram iniciativas promissoras, como o Instituto Liberal, o Instituto Mises Brasil, o Instituto Burke, o Brasil Paralelo e outras iniciativas independentes; mas ainda são tímidas frente à hegemonia cultural progressista. Enquanto a esquerda tem múltiplos canais de formação estética, narrativa e política, a direita ainda luta para sair da reação para a proposição.
A cultura precisa ser vista como uma cadeia de valor simbólico. Livros, filmes, séries, peças de teatro, canais de YouTube, podcasts, escolas, cursos, galerias de arte, revistas, clubes de leitura, grupos de teatro e cineclubes são elementos dessa cadeia. Se a direita deseja reconstruir uma visão de mundo baseada em liberdade, responsabilidade, tradição e mérito, precisa assumir o custo e o tempo dessa construção. Isso exige dinheiro, sim, mas, sobretudo, exige paciência histórica.
A cultura também é campo de disputa de linguagem. A esquerda venceu parcialmente porque conseguiu redefinir palavras-chave como “justiça social”, “democracia”, “direitos”, “respeito” e “cidadania” segundo seus próprios moldes ideológicos. O que Robert Nozick e Hayek chamavam de liberdade negativa foi substituído por um conceito positivo e intervencionista. O que era justiça se transformou em distribuição, e o que era respeito virou submissão a pautas identitárias. Sem disputar essas categorias, a direita continuará falando para convertidos, enquanto o restante da sociedade é educado por outra linguagem.
Há, porém, um ponto de inflexão no horizonte. A saturação do discurso progressista, a incoerência interna de suas agendas e o uso político da cultura como ferramenta de cancelamento e censura têm despertado resistência. Jovens de classe média, empreendedores, artistas independentes e cidadãos comuns começam a perceber que há algo disfuncional na hegemonia simbólica da esquerda. Essa abertura precisa ser aproveitada.
É hora de a direita compreender que disputar a cultura não é mimetizar a estética da esquerda, mas criar uma estética própria. É recuperar a beleza como valor objetivo, o humor como linguagem crítica, a arte como elevação moral, a música como identidade e a literatura como educação. É preciso investir em jovens talentos, formar professores, traduzir obras esquecidas, reeditar clássicos, fundar clubes culturais, organizar eventos e feiras com outro horizonte moral. É preciso criar não apenas oposição à cultura dominante, mas uma alternativa crível, sofisticada e inspiradora.
Se a direita deseja permanecer relevante para além de ciclos eleitorais, precisa transformar sua relação com a cultura. Precisa formar uma geração que leia Scruton, admire Bach, compreenda Cervantes, defenda Aristóteles, ouça Tom Jobim e compreenda Machado de Assis como patrimônio moral da civilização ocidental. Não basta citar Churchill ou Hayek em discursos. É preciso semear instituições duradouras.
Ao abandonar o espaço cultural, a direita permite que seus adversários ditem os termos do debate – e quem define os termos vence as disputas futuras antes mesmo que comecem. Não basta vencer eleições. É preciso conquistar o imaginário – e isso só será possível quando a cultura for entendida não como adorno, mas como trincheira da civilização.
A guerra cultural não é um exagero. É uma descrição da realidade. Quem se recusa a lutar nela não será lembrado pela resistência, mas pela omissão.