O mito da soberania nacional e o silêncio imposto ao indivíduo

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Poucos conceitos são tão sedutores no vocabulário político quanto a soberania nacional. Ela é evocada como escudo contra críticas externas, como justificativa para políticas intervencionistas e como bandeira para despertar sentimentos patrióticos. A palavra, carregada de emoção, parece intocável. Entretanto, por trás desse apelo retórico, há um perigo real: quando a soberania nacional é tratada como valor supremo e absoluto, ela se transforma em mito e, como todo mito político, serve para legitimar a expansão do poder do Estado e calar a voz do indivíduo.

Benjamin Constant, ao diferenciar a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, já alertava que a liberdade coletiva, quando colocada acima da individual, tende a reduzir o cidadão a uma parte indistinta do corpo político. O mito da soberania nacional muitas vezes se encaixa exatamente nesse problema. Ao exaltar a “nação” como sujeito de direitos, transforma o indivíduo em objeto, que existe não para exercer sua própria soberania pessoal, mas para servir a um ente abstrato chamado pátria. Nesse processo, a pessoa perde espaço de autodeterminação e passa a viver subordinada ao interesse estatal.

O liberalismo sempre colocou o indivíduo no centro. Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão, advertia que, quando a retórica política serve para justificar concentração de poder, abre-se espaço para o autoritarismo em nome de fins nobres. A soberania nacional, quando absolutizada, cumpre exatamente esse papel: blinda governantes contra críticas e cria um discurso segundo o qual qualquer oposição enfraquece a pátria. Ludwig von Mises reforçava essa ideia ao afirmar que o Estado não é fim em si mesmo, mas instrumento para proteger a liberdade e a propriedade. Quando a soberania nacional passa a ser usada como justificativa para censura, intervencionismo econômico ou guerras, ela deixa de ser instrumento e se converte em ídolo político.

A história oferece exemplos eloquentes. O regime nazista construiu todo o seu aparato retórico em torno da “vontade da nação” e da defesa da soberania alemã contra inimigos externos e internos. Em nome disso, perseguiu minorias, calou opositores e submeteu milhões de indivíduos a uma lógica coletiva opressora. A União Soviética, sob a bandeira da “soberania do povo”, fez o mesmo: em vez de proteger a autodeterminação de cada cidadão, sufocou vozes divergentes e consolidou o poder centralizado do partido. Na América Latina, ditaduras militares repetiram esse expediente ao afirmar que era preciso defender a soberania nacional contra ameaças externas, legitimando assim a censura, a tortura e a supressão de liberdades básicas.

Mesmo em regimes democráticos, o mito persiste. Líderes populistas, tanto de esquerda quanto de direita, frequentemente invocam a soberania nacional para justificar barreiras comerciais, restrições à circulação de informações e políticas de vigilância. Rússia e China apresentam a defesa da soberania como razão para controlar a internet e sufocar a liberdade de expressão. Venezuela e Nicarágua usam o mesmo argumento para perseguir opositores, apresentando toda crítica como ameaça à integridade nacional. Em todos esses casos, a retórica da soberania nacional funciona como um manto que cobre práticas autoritárias.

Do ponto de vista liberal, é essencial resgatar o conceito correto de soberania. A soberania mais importante é a do indivíduo sobre sua vida, seu corpo e sua propriedade. Isaiah Berlin, ao diferenciar liberdade negativa e positiva, mostrou que a verdadeira liberdade é a ausência de coerção: é o espaço no qual o indivíduo pode agir sem ser obrigado por outros. Quando a soberania nacional é colocada acima dessa liberdade, ela cria a ilusão de independência coletiva, mas às custas da submissão pessoal. O paradoxo é evidente: em nome da defesa da pátria, perde-se a independência do cidadão.

Essa inversão de valores é perigosa porque transforma a nação em um fim em si mesma, esquecendo que ela é apenas a soma de indivíduos livres. Quando os indivíduos são calados, a nação deixa de ser forte — torna-se apenas um organismo amorfo dominado pelo Estado. Alexis de Tocqueville, ao falar da tirania da maioria, advertia sobre o risco de a voz coletiva esmagar o pensamento divergente. A retórica da soberania nacional, quando usada como mito, cria exatamente esse ambiente: o dissidente passa a ser visto como inimigo da pátria, e sua liberdade é sacrificada em nome de uma unidade artificial.

Portanto, é urgente desconstruir o mito da soberania nacional. Defender a integridade territorial, a independência jurídica e a autonomia política de um país é legítimo, mas nunca pode servir de justificativa para reduzir a liberdade individual. Uma nação só é soberana de fato quando seus cidadãos são soberanos sobre suas próprias vidas. Quando o apelo à soberania é usado para calar, punir ou subjugar indivíduos, o conceito perde seu valor e se transforma em máscara para o autoritarismo.

A verdadeira soberania é a do indivíduo. O respeito à pátria e às instituições deve nascer da liberdade de cada cidadão e não da sua submissão. Uma sociedade próspera só se constrói quando vozes diversas podem se manifestar sem medo, quando escolhas individuais são respeitadas e quando a autonomia pessoal não é sacrificada em nome de abstrações políticas. Quando a soberania nacional é usada como mito para silenciar, já não estamos diante de liberdade, mas de servidão disfarçada.

 

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João Loyola

João Loyola

Formado em administração pela PUC Minas e em Gestão de Seguros pela ENS, Pós-Graduado em Gestão Estratégia de Seguros pela ENS, é sócio sucessor da Atualiza Seguros, trabalha no programa Minas Livre para Crescer na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de MG e é associado do IFL-BH.

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