O flerte perigoso da direita brasileira com Nayib Bukele
O mundo tem visto com atenção e, por vezes, até mesmo admiração, a experiência de Nayib Bukele em El Salvador, país que, sob sua gestão, deixou a posição de um dos mais perigosos para se tornar, aparentemente, um dos mais seguros do mundo. O país que em 2015 chegou a amargar 104 homicídios a cada 100 mil habitantes por ano registrou uma taxa de 1,9 em 2024. O entusiasmo com a impressionante redução da criminalidade, naturalmente, é maior em países onde a violência é um grande flagelo, como é o caso do Brasil. Não à toa, o caso de El Salvador tem despertado interesse de políticos por aqui, principalmente no espectro da direita. Muitos já viajaram para o país da América Central para investigar em primeira mão o segredo do sucesso de Bukele e outros, como veremos, até prometem replicar a coisa aqui. Ocorre que, em que pese o mérito da redução da criminalidade, não há realmente segredo por trás das cifras de Bukele, tampouco, como buscarei demonstrar, seu governo deve servir como um modelo para nações que se reputam democráticas, pois, por óbvio, ele não tem nada de democrático.
Primeiramente, é forçoso dizer que temos todo direito de reclamar da criminalidade no Brasil, de nos indignar quando vemos indivíduos com dezenas, quando não centenas, de passagens pela polícia andando livres, leves e soltos, enquanto o trabalhador, em muitas partes do país, tem medo de sair às ruas; também temos direito de demandar punições mais severas e exemplares aos bandidos e de questionar a leniência com a qual muitos intelectuais de esquerda — quando não o próprio sistema — tratam os algozes da nossa segurança como “vítimas da sociedade”. É fato que muitas mudanças devem ocorrer para o aprimoramento da segurança pública no Brasil, o que inclui desde recrudescimento das punições, aumento do policiamento até ações coordenadas de inteligência. Contudo, não podemos cair no conto do vigário e aquiescer com a importação de um projeto autoritário crentes de que esse é o único caminho possível.
Quando digo que não há segredo por trás da experiência de El Salvador, refiro-me ao fato de que o grande desafio para a segurança pública é fazer face à criminalidade sem comprometer o Estado de Direito, isto é, não jogar o bebê fora junto com a água do banho. Não havendo preocupação com a preservação do Estado de Direito, a coisa fica muito mais simples. De fato, a primeira ação empreendida por Bukele para lhe permitir dar vida a seu vale-tudo foi o estabelecimento de um estado de exceção no país em março de 2022. Alguém poderia argumentar que, face à criminalidade em El Salvador, onde gangues controlavam territórios e o direito de ir a vir da população havia sigo tolhido (transitar na vizinhança “errada” poderia significar a morte), medidas excepcionais do governo se justificariam de forma temporária, em nome do sucesso na luta contra o crime. Ocorre que o estado de exceção de Bukele agora é sua política de Estado e não há qualquer indicativo de que ele retrocederá, ainda que, em tese, já tenha alcançado o objetivo inicial. De fato, a “exceção” já foi renovada nada mais nada menos do que 36 vezes. O caso de El Salvador é uma ilustração perfeita do risco que é conceder, ainda que em caráter temporário, poderes extraordinários ao Estado: o que é exceção pode acabar virando a regra e o incumbente, cujos poderes foram hipertrofiados, pode se mostrar disposto a fazer de tudo para se manter no poder.
Originalmente, a Constituição de El Salvador vedava a possibilidade de reeleição para um mandato consecutivo, mas, graças a uma reinterpretação da Suprema Corte em 2023, Bukele logrou concorrer e ser reeleito com mais de 80% dos votos. O pulo do gato é que, em maio de 2021, o partido de Bukele, Novas Ideias, conseguiu destituir, em uma única tacada, cinco ministros da suprema corte, bem como o procurador-geral, substituindo-os, rapidamente, por nomes mais amigáveis ao governo. Em setembro do mesmo ano, o Legislativo, controlado majoritariamente pelo Novas Ideias, aprovou medida que aposentou compulsoriamente um terço dos juízes do país. Para completar o projeto de permanência no poder de Bukele, a Assembleia Legislativa aprovou em agosto de 2025 a possibilidade de reeleições sem limites, aumentou o mandato presidencial de 5 para 6 anos, bem como eliminou o 2º turno nas eleições.
O paralelo com a Venezuela é muito claro. Em ambos os casos, fez-se um aparelhamento do poder Judiciário, em especial, da suprema corte. Em ambos os casos, usou-se o aparelhamento das instituições para acabar com o limite à reeleição, permitindo a permanência indefinida do incumbente no poder. Certo, em tese, ele ainda precisa ser reeleito a cada 6 anos, mas, tal como na Venezuela, não deve ser difícil obter esse resultado abaixo de um estado de exceção, o qual, por sua própria natureza, não opera dentro de um sistema de pesos e contrapesos. Nesse sentido, negar a obviedade que é o caminho ditatorial trilhado por Bukele, dizendo que, dados sua popularidade e aparente sucesso no combate ao crime, ele deve poder ser reeleito indefinidamente, não é diferente de dizer que Hugo Chávez e Nicolás Maduro eram democratas sob a égide da “vontade popular”.
Não apenas os meios e a forma atestam o problema do bukelismo, mas também suas consequências. El Salvador tem hoje a maior taxa de encarceramento do mundo, com a assustadora cifra de 1600 encarceramentos a cada 100 mil habitantes — o segundo da fila é Cuba, com 794 presos a cada 100 mil habitantes. Se, por um lado, isso pode ser explicado pelo elevado nível de criminalidade que acometia o país até então, por outro, temos que considerar que nem todos os que estão presos são necessariamente culpados. Por razões óbvias, é difícil saber o número exato de inocentes presos, mas, conforme as ONGs Socorro Jurídico Humanitário, Cristosal e MOVIR, dos 83 mil detidos acusados de serem membros de gangues, cerca de 30 mil seriam inocentes. Bukele questiona esse número, mas admite que 8 mil pessoas inocentes teriam sido presas e depois liberadas. Para além do fato de que isso, por si só, já representa quase 10% do total — nem de perto uma cifra baixa —, há uma contradição: Bukele questiona o número de 30 mil produzido pelas ONGs, mas diz que já libertaram 8 mil e ainda vão “libertar 100% dos inocentes”. Ora, isso é uma admissão de que os 8 mil que já teriam sido libertados não são a totalidade dos inocentes, mas que há outros ainda presos para os quais ainda não há data para libertação.
A prisão de inocentes é consequência inelutável e lógica de um regime de exceção que permite prisões em massa sem ordens judiciais. Basta uma denúncia anônima para que alguém seja preso. De fato, o governo criou um canal telefônico dedicado exclusivamente ao recebimento de denúncias. Não é difícil supor como, em tal estado de coisas, fazer uma denúncia falsa possa se converter em um instrumento para a vingança pessoal. O elevado nível de encarceramento, somado com um estado de exceção já renovado 36 vezes, sinalizam que tais denúncias não são devidamente escrutinadas antes de levarem a uma prisão; no mínimo não há garantia nenhuma de que isso ocorra.
Além das denúncias anônimas, ter tatuagens, ficar nervoso ao ser abordado por policiais ou integrar ditas “agrupações ilícitas” podem ser motivo para prisão. Os policiais devem cumprir cotas de prisões, havendo relatos de que policiais foram impedidos de terminar seus turnos, ou mesmo de comer, enquanto não cumprissem as cotas. Diante de tudo isso, é lícito supor que o número de inocentes presos é muito superior ao admitido pelo governo.
Outro sinal do total desrespeito aos direitos humanos é o fato de que muitos presos “desaparecem” dentro do sistema carcerário, sem que suas famílias saibam para onde foram levados ou se ao menos estão vivos — o governo se recusa a revelar o número de mortes nas prisões.
Se o estado de exceção é justificado para combater a violência e levar os criminosos à justiça, até o momento ninguém, absolutamente ninguém, foi a julgamento, tendo, portanto, a chance de se defender. Para piorar o quadro, quando os julgamentos acontecerem (se acontecerem), eles serão processos coletivos com até 900 réus cada. Temos o atual exemplo no Brasil, com os julgamentos coletivos e sem individualização de conduta do 08 de janeiro para demonstrar o quanto isso viola o devido processo legal. Julgar levas de dezenas ou até mesmo uma centena de réus como se sua conduta fosse uníssona já é um descalabro; agora imaginem as injustiças que serão perpetradas em julgamentos coletivos com até 900 réus. Longe de terem a prisão revista, muitos inocentes provavelmente serão condenados a passar o resto da vida atrás das grades.
Como não poderia deixar de ser, em um desenvolvimento natural de um regime de exceção, críticos do governo e jornalistas já estão sendo alvejados e até mesmo presos — ainda que se use o suposto cometimento de outros crimes como desculpa, as prisões de críticos como a advogada Ruth Eleonora López, do também advogado Enrique Anaya, do pastor José Ángel Pérez e do ambientalista Alejandro Henríquez, carregam sinais claros de perseguição política. Muitos jornalistas estão deixando El Salvador e a posição do país no ranking global de liberdade de imprensa, elaborado pelos Repórteres sem Fronteira, reflete isso: em uma pontuação que vai de 0 a 100, sendo 100 o melhor cenário possível, El Salvador pontua 44. A piora da liberdade de imprensa em El Salvador é coincidente com o estado de exceção imposto por Bukele, com o país caindo 61 posições no ranking global nos últimos 5 anos.
É inegável que El Salvador está sob um regime autoritário, que o devido processo legal não está sendo obedecido e que muitos inocentes estão sentindo na pele as consequências da arbitrariedade. Esse estado de coisas é reconhecido, ainda que tacitamente, pelos entusiastas de Bukele, que, no entanto, o justificam sempre como o preço a se pagar pela redução da criminalidade. Na retórica dos “bukelistas”, o infortúnio de uma minoria de inocentes é um preço baixo diante de uma suposta paz social gozada pelo restante da população. Tal narrativa é protagonizada pelo próprio Bukele; por meio de um meme com a imagem de Thanos, vilão da Marvel, publicado em junho, Bukele argumenta que o encarceramento de 1,5% da população (com todas as implicações apresentadas ao longo deste artigo) é um custo baixo diante de uma redução de 98% do crime. Trata-se de uma lógica utilitarista levada às últimas consequências: o benefício usufruído pelo maior número da população seria maior do que o malefício experimentado pelo menor número; dessa forma, a possibilidade de prejudicar uma minoria de inocentes não depõe contra a política e eles devem ser visto como um justo sacrifício em prol da maioria. Se aceito, este tipo de perversidade utilitária acabaria por justificar toda sorte de barbáries perpetradas pelo Estado. Aliás, é assim que governos ditatoriais são justificados desde sempre por seus defensores: supostos pontos positivos são apresentados para relativizar o caráter autoritário de um regime. Se o indivíduo pode ser sacrificado em benefício da maioria, se sua vida tem menos valor fora do todo do que no todo e se a sociedade aceita a vulgarização da perda da liberdade para se sentir mais segura, então o que temos já não é nada semelhante a uma democracia liberal.
No campo da direita brasileira, nomes como o deputado Eduardo Bolsonaro e o governador Romeu Zema, presidenciável pelo NOVO, não só já elogiaram publicamente as políticas de Bukele como viajaram para o país centro-americano para conferir a coisa em primeira mão. No caso do também presidenciável e governador Tarcísio de Freitas, não há menções direitas a Bukele, mas seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, alvo frequente de críticas por casos recentes de truculência por parte da Polícia Militar de São Paulo, já argumentou que o Brasil deveria seguir o exemplo de El Salvador. O caso mais notório, contudo, é do MBL, que não poupa elogios ao regime de Bukele, moldando nele suas propostas para a segurança pública no âmbito do partido que estão tentando criar. A defesa, por parte do MBL, do chamado “direito penal do inimigo”, não deixa margem de dúvidas para o que o movimento, que parece ter abandonado o liberalismo pelo caminho, pretende.
A violência no Brasil está há muito na ordem do dia e é compreensível que a direita, campo para o qual o tema segurança pública sempre foi muito caro, se mobilize para apresentar soluções. Como estratégia política, também faz sentido que se busque uma retórica mais dura contra o crime como antagonismo a setores da esquerda que defendem coisas como abolicionismo penal e que tratam criminosos como “vítimas da sociedade”. Contudo, não podemos aceitar a falsa dicotomia de que necessitamos abdicar de nossas liberdades e do devido processo legal para ter segurança. Na verdade, isso entra em frontal colisão com o pensamento liberal, no qual a função precípua do Estado é garantir a justiça e a segurança, de forma que possamos exercer nossa liberdade sem, contudo, infringir a liberdade alheia. A ordem, portanto, é um objetivo fundamental, mas a ordem acompanhada de justiça, reconhecendo os direitos de cada indivíduo. Se acreditássemos que a ordem a qualquer custo fosse o desiderato, então estaríamos mais próximos de um contratualismo absolutista do que do império da lei, mais próximos do Leviatã de Thomas Hobbes do que do governo civil de John Locke.
Além do imperdoável erro que é sugerir ao povo o sacrifício de suas liberdades em troca de uma promessa de segurança — um artifício capcioso que só pode interessar a populistas em potencial —, os bukelistas brasileiros pecam pela afetada noção de proporção. El Salvador é um país com mais de 6 milhões de habitantes, ao passo que o Brasil tem 212 milhões, além der ser o quinto maior país do mundo. Para além das implicações humanitárias e democráticas, tentar implantar o modelo de Bukele aqui seria impossível, demandando, provavelmente, uma centralização das políticas de segurança pública em Brasília no processo, talvez até mesmo colocando as polícias estaduais sob a batuta do governo federal.
Aos que dizem que já não gozamos plenamente de nossas liberdades devido à ação do crime organizado (embora a situação aqui não seja tão dramática quanto era em El Salvador, é verdade que há áreas completamente controlada por facções), respondo que não parece ser uma ideia nada inteligente entregar o que resta de nossa liberdade ao Estado na esperança que ele nos devolva de bom grado no momento “oportuno”. A segurança que queremos é uma em que a livre ação não é tolhida pelo medo, seja do crime, seja de arbitrariedades do Estado. Não há verdadeira paz social se você pode ir preso a qualquer momento devido a uma denúncia anônima, sem mandado judicial, sem contato com a família, sem prazo para ser julgado e sem garantias de um julgamento justo e individualizado.
Temos muito que suspeitar daqueles que, dentre tantas opções, buscam se inspirar em Nayib Bukele. Islândia, Irlanda, Canadá, Nova Zelândia, Suíça, Nova Zelândia, Áustria e Portugal são alguns dos países mais seguros do mundo. Claro que, também aqui, não é possível simplesmente imitar e transplantar políticas de países tão diferentes, seja em tamanho ou em cultura; o ponto é que abundam exemplos de nações democráticas e extremamente seguras, sem que essa segurança seja mantida à base de um regime de exceção. Aqueles que pretendem governar o Brasil devem buscar se inspirar em casos de sucesso de nações democráticas, bem como em evidências concretas.
Como pode aparecer quem diga que tal posicionamento é sintoma de uma dita rivalidade entre liberalismo e conservadorismo (relacionando, nesse caso, o vale-tudo de Bukele a um pretenso conservadorismo), digo que o caminho que proponho aqui é o mais conservador possível. Não há qualquer indicativo de que Bukele pretenda relaxar o estado de exceção, e isso acontecer é condição necessária para que se possa avaliar se os números, a princípio impressionantes, de redução da criminalidade se manterão. O bukelismo é uma novidade revolucionária, um projeto que promete o paraíso, mas que ainda não teve a verdadeira prova. Já países que se mantém seguros há anos, talvez décadas, são melhores referências por terem resistido ao teste do tempo. Não há nada mais conservador do que confiar no teste do tempo ao invés de em novidades revolucionárias, as quais, com frequência, acabam sendo projetos de engenharia social que entregam tudo ao Estado.
Fontes:
https://apnews.com/international-news-general-news-9b1e423ebbf0407da4c582f47c196007
https://cnnespanol.cnn.com/2024/01/29/bukele-reeleccion-el-salvador-orix