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John Locke e o Estado de Direito

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Contexto histórico

O período no qual os contratualistas ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704) produziram suas obras é marcado por intensos e determinantes conflitos de ordem política e religiosa, de modo que se faz necessário um preâmbulo histórico a fim de contextualizá-los.

O rei Henrique VIII, da dinastia Tudor, era casado com a nobre espanhola Catarina de Aragão, que deu-lhe uma filha, Maria I, mas ficou impossibilitada de ter outros filhos, o que colocava o trono inglês potencialmente em risco. Diante dessa situação, Henrique VIII solicitou ao papa a anulação do seu casamento, que foi negada. A despeito da recusa papal, o rei anulou por si próprio seu casamento, desposou Ana Bolena e foi excomungado. Ato contínuo, reagiu com a criação, em 1534, de uma Igreja nacional, a igreja anglicana, da qual se fez chefe.

Em meio às complexas questões nas quais se misturavam a política e a religião, em meio às inúmeras controvérsias entre católicos, anglicanos e puritanos (protestantes não anglicanos), a sociedade civil acabou ganhando força, “criando-se a tradição de se limitar o poder do monarca através de uma assembleia de representantes que se tornaria o embrião do parlamento moderno[1]”; o que não se deu, porém, sem forte resistência dos que defendiam o absolutismo.

Ao proclamar que o poder do monarca é de origem divina, James I (1566-1625) foi teoricamente contestado por vários pensadores, dentre eles Francisco Suarez (1548-1617) e, posteriormente, John Locke. Este último, na verdade, contestou especificamente o livro Patriarcha, de Robert Filmer (1588-1653), que fundamentava a doutrina de James I. O governo de Charles I, filho de James I, encontrou bastante resistência e o confronto entre parlamento e rei resultou em uma guerra civil que se estendeu de 1642 a 1646, tendo por resultado a execução de Charles I (1649) e a extinção da monarquia.

Já vimos que, no contexto dessa guerra civil, Thomas Hobbes reivindicou teoricamente um poder soberano, absoluto, despótico, embora não o fundamentasse na teoria do direito divino dos reis. No pensamento de Hobbes, qualquer questionamento da autoridade do rei, qualquer divisão de poder, conduz ao enfraquecimento do Estado e consequentemente à guerra civil. Ora, nesse aspecto, como em muitos outros, o pensamento de John Locke foi-lhe antípoda.

Mas sigamos as vicissitudes da história da Inglaterra. Veremos que, após a extinção da monarquia, o país foi governado entre 1653 e 1658 pela ditadura de Oliver Cromwell (líder dos puritanos), a cuja morte sucede uma restauração da monarquia por Charles II e depois por James II, que era católico.

A tentativa de James II de prolongar a permanência de um rei católico contraindo segundo matrimônio com uma princesa católica, de quem teve um filho, deu ensejo para a Revolução Gloriosa, de 1688, “que coloca no poder a filha protestante do primeiro casamento de James II, a rainha Mary II (1662-1694), casada com seu primo Guilherme de Orange (1650-1702), que, com o título de William III, assumiu o trono juntamente com sua esposa.[2]

Quando a Câmara dos comuns, vitoriosa, traz de volta, para assumir o poder, Guilherme de Orange, que estava refugiado na Holanda, deixa claro que tal poder era por ela conferido e que seria por ela monitorado. Dali em diante, instaura-se definitivamente na Inglaterra a monarquia constitucional.

John Locke, que não por acaso retornou à Inglaterra no mesmo navio que transportava Guilherme de Orange, havia participado ativamente da revolução gloriosa, para cujo desfecho muito contribui a sistematização das ideias liberais concebidas na obra Dois tratados sobre o governo, publicada em 1689, mesmo ano em que “o Parlamento vota a declaração de direitos (Bill of Rights), que se tornaria, juntamente com a Carta Magna, um dos mais importantes documentos políticos da época moderna, consagradores do denominado Estado de Direito.[3]

Dois tratados sobre o governo

O primeiro dos Dois tratados sobre o governo civil, de John Locke, ocupa-se da refutação da obra Patriarca (1680), de Sir Robert Fimer, que defendia a monarquia absoluta e a origem divina do poder do monarca. Tendo refutado no primeiro tratado a teoria do direito divino dos reis, Locke oferecerá, no Segundo Tratado, um novo fundamento para o governo civil.

Diferentemente de Hobbes, Locke não equipara estado de natureza com estado de guerra. No estado de natureza há a lei natural, que não está restrita à necessidade de autopreservação, mas vai além. Todo homem é obrigado a preservar a si mesmo, mas todo homem é obrigado também a preservar, tanto quanto puder, a própria humanidade: “O estado de natureza tem uma lei de natureza para governa-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que […] sendo todos iguais e independentes,  nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses[4]” [§ 6].

O estado de natureza não é, para Locke, a condição de guerra de todos contra todos supostamente existente antes do advento da sociedade civil, mas um estado no qual a liberdade natural do homem é limitada tão somente pela lei natural, não havendo poder decisório para o qual se possa apelar em caso de conflito. Nesse sentido, Locke se insere na tradição antiga que pensa o estado de natureza como um estado já social (embora não civil). É um estado no qual os homens vivem juntos segundo a razão sem um superior comum com autoridade para julgar potenciais conflitos. Sendo assim, o estado de natureza de Locke não é tão violento quanto o de Hobbes e, consequentemente, os remédios propostos por ambos para os inconvenientes do estado de natureza não terão a mesma dosagem.

Locke tem clareza de que o poder absoluto e arbitrário de um poderoso Leviatã acarretaria uma situação pior que o próprio estado de natureza. Diferentemente do que se configura em Hobbes, o pacto social não se estabelece com a renúncia por parte dos indivíduos de sua liberdade em favor do Estado, a fim de dele obter proteção. Como o estado de natureza, para Locke, é um estado precário, mas não fatal, o pacto social não se estabelece num movimento radical, irrevogável e absoluto.

O único direito ao qual o indivíduo renuncia em troca da proteção do Estado é o seu direito de julgar e punir o erro dos outros, excetuando-se ainda os casos imediatos de legítima defesa. Não se trata, pois, na passagem do estado de natureza para o Estado civil, de um movimento de pânico em defesa da vida, mas de uma associação entre indivíduos livres a fim de salvaguardar a tranquilidade e a prosperidade, por meio da proteção mútua de suas vidas, suas liberdades e seus bens, que Locke designa com um nome geral de “propriedade[5]

Vida, liberdade e bens

Esse conjunto (vida, liberdade e bens), ao qual Locke chama “propriedade”, designa um todo inseparável que pode ser traduzido por “domínio próprio” e a construção desse conceito passa pela relação que Locke estabelece entre corpo, trabalho e propriedade privada. O trabalho seria uma extensão do corpo e da posse que cada um tem de seu próprio corpo se deduz a posse dos materiais modificados por ele. Graças ao trabalho, o homem adquire o direito à propriedade, direito esse, portanto, que é natural e anterior à sociedade civil, embora não inato.

É dado ao homem, segundo Locke, apropriar-se, por meio do trabalho, de frações da natureza. Se o trabalho “atribui a maior parte do valor à terra, sem o qual dificilmente valeria coisa alguma[6]”, o homem adquire, por meio dele, o direito à propriedade. Trabalho e propriedade não se encontram, pois, em relação de oposição, mas de frutífera interdependência: o trabalho é a origem e o fundamento da propriedade, sendo evidente que “embora a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem, senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria ainda em si mesmo a base da propriedade.[7]

É justamente a fruição da propriedade e a prosperidade dela advinda que estaria em constante ameaça no estado de natureza e é para defendê-la que se estabelece o pacto social. Não como um contrato entre governantes e governados, mas como acordo mútuo entre homens livres. Sendo assim, “o objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidades, colocando-se sob governo, é a preservação da propriedade.[8]” É, pois, a teoria da propriedade que explica, em Locke, a necessidade de transição do estado de natureza para a sociedade civil.

Liberdade e lei 

A noção de liberdade sob o império da lei não é uma originalidade de Locke. Na verdade, essa doutrina, que está no âmago do liberalismo clássico, remete à própria tradição clássica, desde as primeiras formulações políticas da Grécia Antiga, mais especificamente nas concepções que forjaram o Estado jurídico ateniense. O que Locke fez foi dar-lhe maior clareza e aprofundamento, em uma linguagem mais em acordo com os pressupostos próprios da modernidade. De todo modo, a liberdade segundo Locke é a liberdade segundo as mais tradicionais correntes liberais, servindo, inclusive, como pedra de toque para distinguir as tendências realmente liberais daquelas que se desviaram para um democratismo ou progressismo.

A liberdade não consiste em poder fazer tudo, mas em não estar submetido ao poder arbitrário de outrem; não se trata propriamente de um poder, mas de um tipo de relação social contrário à coerção.  Em decorrência dessa definição, o próprio Estado é um governo de leis, não de homens: é uma situação do Estado de Direito, de rule of law.

“Como em todos os estados de seres criados capazes de leis, onde não há lei não existe liberdade. […] Mas a liberdade não é, como nos dizem, licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz – porquanto quem estaria livre, se o capricho de qualquer outra pessoa pudesse dominá-lo? Mas liberdade de dispor e ordenar, conforme lhe apraz a própria pessoa, as ações, as posses e toda a sua propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais vive, sem ficar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguindo livremente sua própria vontade”.[9]

Conclusão

O filósofo inglês John Locke destacou-se, em polo oposto a Hobbes, como crítico do Absolutismo. Considerado pai do liberalismo, Locke pretendia que o Estado fosse limitado e vigiado, precisamente para evitar que um poder excessivo avançasse sobre os direitos naturais dos indivíduos: direito à vida, à liberdade e à propriedade. Para Locke, todo governo deve ser limitado em seus poderes, existe somente pelo consentimento dos governados e deve ser regido por leis claras, gerais, públicas, não retroativas, estáveis e iguais para todos.

Essas ideias de Locke exerceram bastante influência em todo o pensamento político ocidental. Na sua época, os seus Dois Tratados serviram como justificação e fundamentação da Revolução Gloriosa, que estabeleceu na Inglaterra a monarquia constitucional. Posteriormente, no século XVIII, iluministas franceses colheram em suas ideias motivos para derrubar o Ancién Regime, Montesquieu nele se inspirou para a formulação da teoria da divisão dos poderes e pensadores americanos foram por ele influenciados na luta pela independência dos Estados Unidos. Suas teses estão na base das democracias liberais e no coração do liberalismo moderno.  

Referências bibliográficas

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os pensadores)

PAIM, Antonio. Evolução histórica do liberalismo. São Paulo: LVM editora, 2019

NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains: Quadrige/PUF, 2002, Paris

STRAUSS, Leo História da filosofia política/Leo Strauss e Joseph Cropsey. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

[1] PAIM, A. Evolução histórica do liberalismo. São Paulo: LVM editora, 2019.p. 59

[2]Idem, p. 60

[3] Idem p. 60

[4] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo,

[5] Cf LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo,

[6] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo §43

[7] Idem §44

[8] Idem §124

[9] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. §57

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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