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Precisamos mesmo do Estado para impor limites aos “excessos” do capitalismo?

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O Le Monde Diplomatique publicou um texto este mês em que defende uma ação estatal “global” para conter os “excessos” do capitalismo. A autoria é de Wagner Siqueira, presidente do Conselho Federal de Administração. Logo no primeiro parágrafo fica clara a sua influência marxista:

Paradoxalmente, o capitalismo vai cada vez mais longe, justamente por não se dirigir – especificamente – a lugar algum. O mercado não tem um objetivo global, ele não é nada mais do que o encontro de uma variedade indiscriminada de objetivos individuais que buscam se realizar simultaneamente todo o tempo. Cada qual deseja realizar sempre mais. Nesse fluxo, sem limites intrínsecos, o capitalismo precisa dispor de limites externos para se conter. Ao contrário disso, como bem se refere Rosa de Luxemburgo, em sua clássica obra “A Acumulação de Capital”, vai sempre querer se expandir.

A tese de Rosa Luxemburgo não se sustenta em sólida teoria, muito menos nos fatos. Infelizmente, não é coisa só de acadêmico marxista, mas também de autores populares, e a premissa de economia como “jogo de soma zero”, em que para alguém vencer outro deve perder, está presente em diversos lugares, desde obras sobre outros temas centrais, como Sapiens, de Yuval Noah Harari, até na política de tarifas protecionistas do presidente Trump. É o velho mercantilismo, já refutado por Adam Smith, em novas embalagens. O texto do Diplomatique segue em sua cartilha marxista:

Por ser eminentemente parasitário, o sistema capitalista só consegue prosperar se encontra um organismo, ainda não explorado, que lhe forneça alimento. No entanto, não é capaz de fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, o que resulta na destruição, paulatina, das condições de prosperidade e de sobrevivência deste. Por isso, avança sobre os planos de previdência e de saúde em todo mundo. A questão causal das hipotecas dos subprimes da crise de 2008, e a invasão capitalista recente, depois da Guerra Fria, em todo o mundo oriental, são outros exemplos, apenas ilustrativos, da sanha parasitária capitalista tão bem descrita por Rosa de Luxemburgo nos primeiros anos do século XX.

A “tese” é assim lançada sobre o leitor, como se fosse uma verdade auto-evidente, uma constatação de um simples fato, e não uma afirmação sem base factual e fruto somente da ideologia. O sistema capitalista foi responsável pela retirada de milhões de pessoas da condição natural de miséria, enquanto os países submetidos ao sistema socialista conseguiram afundar ainda mais na pobreza.

O sistema capitalista depende da cooperação, de trocas voluntárias, e não há nada de parasitário nisso. Ao contrário: é um modelo de “win-win situation”, ou seja, ganha-ganha com interações mutuamente benéficas. Já a política costuma ser o mecanismo para a exploração, a criação de conflitos de soma zero. É o que explica esse texto de Richard M. Ebeling, do FEE, publicado na Gazeta do Povo:

A política se torna um campo de batalha em que se disputa o controle. Se você e seus aliados não exercerem esse controle, outros o farão, e seu destino estará nas mãos desses outros. Ao mesmo tempo, o governo torna-se uma arena em que grupos clientelistas de todos os tipos se combatem para utilizar o governo para suas próprias finalidades, e as instituições do governo também tornam-se uma fonte de poder, privilégio e riqueza para os políticos e burocratas que atuam no governo. As pessoas no governo também têm seus próprios interesses, que elas promovem atendendo aos grupos de interesses que desejam comer à mesa política. 

Essa é a natureza da política em toda parte. Às vezes ela é mais tirânica e mortífera, em lugares onde expressar sua opinião ou criticar quem está no poder pode levar à prisão, encarceramento, tortura e morte. Resistir ao poder político pode resultar em guerras civis destrutivas. 

[…]

Uma parte crescente da humanidade, inclusive nos Estados Unidos, parece ter perdido de vista essa forma alternativa de existência social. Essa alternativa começa por conceber os seres humanos como indivíduos, não como coletivos sociais, raciais ou de gênero. É a filosofia do individualismo que declara que cada ser humano tem direito à sua própria vida, sua liberdade e sua propriedade adquirida honestamente. Ela declara que cada indivíduo é dono de si. Ele não é propriedade de nenhum coletivo social ao qual deva sua obediência e seu sacrifício se um bem maior declarado do grupo o necessitar ou exigir. 

Essa alternativa também declara que todos os relacionamentos humanos devem ser baseados na concordância voluntária e no consentimento mútuo. Ninguém pode ser forçado a interagir com outros contra sua vontade. A cooperação humana é construída sobre a base do consentimento pacífico e da escolha pessoal. Cada indivíduo pode ter sua ideia própria de uma vida boa, uma hierarquia de valores desejável ou o que pode proporcionar felicidade humana. Mas ele não pode impor sua visão a outros contra a vontade deles, nem tampouco qualquer outra pessoa pode impor uma visão diferente a ele. 

[…]

Esse sistema político, econômico e social é conhecido por vários nomes: liberalismo (clássico), o livre mercado ou capitalismo. Todos esses nomes denotam essa maneira distinta de viver na qual as pessoas não podem coagir ou compelir o próximo. Conseguir que outras pessoas ajam de maneira diferente à atual só pode ser tentado por meio do diálogo, da persuasão e do exemplo próprio. 

Parte desse processo de diálogo e persuasão é feito das interações de pessoas no mercado. Se você quiser que alguém lhe forneça um bem ou preste um serviço, como o “demandante” dessas coisas você só conseguirá que outros as supram se você oferecer alguma coisa em troca e negociar os termos dessa troca. Como explicou o filósofo moral e economista escocês Adam Smith há quase 250 anos, uma pessoa livre diz à outra: “Se você fizer isso para mim, eu farei aquilo para você”. 

Cada troca em tal “sistema de liberdade natural”, como Adam Smith o chamava, atrela o interesse próprio de cada participante ao serviço de outros, como o meio institucional de conseguir que outros o sirvam. O interesse próprio é direcionado ao aprimoramento do “bem comum”, entendido como as condições dos membros individuais da sociedade, e não como algum “bem social” coletivo imposto à força a todos, independentemente de compartilharem ou não essa visão. 

O autor segue mostrando as vantagens do sistema liberal capitalista, ignoradas pelo texto do Diplomatique. O grau de radicalismo é tanto que até o sanguinário ditador Lenin é resgatado como um acadêmico sério e profeta:

Nunca suas previsões foram tão verdadeiras. Ademais, suas ideias e críticas ao Leninismo nunca deixaram de ser tão precisas. Mas, à época, não foram ouvidas e muito menos acatadas. Esses limites a serem interpostos hoje pela sociedade globalizada cidadã ao capitalismo e ao mundo das organizações empresariais são de natureza jurídicos-políticos ou institucionais-legais, morais e éticos. Em situações especiais, também espirituais ou religiosos, nos casos, por exemplo, de sociedades islâmicas, judias, e de outras teocracias em que não permaneçam os critérios da laicidade na gestão dos seus destinos. São limites que devem ser estabelecidos sobre o sistema capitalista em si, também, portanto, sobre as organizações empresariais, seus braços constitutivos. As organizações empresariais irão tão longe quanto puderem na busca da riqueza, se não forem limitadas moral e socialmente em seu expansionismo sobre a utilização dos recursos naturais disponíveis.

Não adianta querer moralizar o capitalismo de dentro para fora. O capitalismo não é moral nem imoral, ele é amoral. Por duas razões principais: a primeira é que para ser moral o capitalismo teria de ser uma pessoa. Mas não o é. Ora, o capitalismo é um processo impessoal, sem sujeito nem fim.

A segunda razão é que ele não funciona à luz da virtude e do desinteresse, mas do interesse de seus acionistas majoritários, muitas vezes bem concentrados, personalizados e familiares. Funciona orientado pelo egoísmo em detrimento de outros, quando não de todos.

Se o egoísmo é uma força expressiva na construção da riqueza pela via do capitalismo, efetivamente, ele não é suficiente para o desenvolvimento de uma civilização, nem mesmo de uma sociedade global humanamente aceitável. Para se alcançar isso, atenuar circunstâncias tão desiguais, é preciso impor limites e regras equânimes e equitativas ao mercado, desde que não sejam também elas mercantis ou mercantilizáveis.

O teor autoritário, quiçá totalitário, salta aos olhos. Não nego que alguns liberais pecam por não compreenderem a importância dos valores morais para garantir um sucesso maior do sistema capitalista, já que as liberdades individuais não sobrevivem num vácuo de valores. Mas quem disse que, para contrapor a amoralidade do mercado, é necessário impor determinados valores? Quem vai impor? O estado? A elite “progressista”? Os “ungidos”? Se o mercado é formado por indivíduos com interesses próprios, a política é por acaso formada por santos abnegados e altruístas?

Os conservadores podem entrar em campo aqui para ajudar. O arcabouço de valores deve ser preservado por meio de tradições, de uma “ordem espontânea” formada ao longo dos séculos. Fazer tábula rasa desse legado civilizacional para impor valores definidos de cima para baixo, por uma elite governante “esclarecida”, é o caminho da desgraça, como a história cansou de mostrar.

Mas, como fica claro no texto, não são “apenas” valores que os autores querem impor, mas também regulações econômicas asfixiantes da liberdade, como tabela de preços com base na “ética” e outras aberrações do tipo, que se mostraram catastróficas ao longo de toda experiência humana:

Não peçamos ao mercado ou ao sistema capitalista para se auto imporem limites ou regras de constrangimento em suas ações expansionistas. Eles não os farão. Qual é o preço moral de um barril de petróleo ou de uma saca de café, de soja ou de uma tonelada de ferro? O mercado jamais o fará sob a perspectiva moral ou ética. E assim também procedem as ciências em geral, como a física, a medicina, a biologia e a economia como um todo ou nas suas especificidades. Não vão se limitar a si mesmos. Buscarão sempre se desenvolver e expandir. São necessárias ordens externas que lhes imponham limites e regras.

Estes só podem ser feitos, sustentados e exigidos pela consciência cidadã por meio do direito e da política. É evidente que, por razões meramente pragmáticas e de realismo fático, os lucros empresariais alcançados jamais serão infinitos, como por certo os acionistas em geral gostariam tanto. Mas não contemos com a economia e o mercado para a imposição de limites de ganhos a si próprios. Não o farão. Essa imposição de limites e de regras poderá ser feita por lei, mas ninguém até agora se dispôs a fazê-la. E é bem compreensível que assim seja. Afinal, paradoxalmente, como um governo pode censurar uma empresa de obter lucros ou queira limitá-la por lei quando a riqueza produzida por ela lhe garante também se beneficiar pela arrecadação tributária? O que está em jogo é menos o lucro das empresas e mais a sua redistribuição.

E lá está a grande demanda esquerdista da atualidade, presente na famosa obra (ainda que pouco lida) de Thomas Piketty, também francês. A palavra-chave é “redistribuição”, como se o estado tivesse o dever moral de tomar à força o que foi produzido por indivíduos e alocar “melhor” esses recursos na sociedade. Novamente, partem da premissa de economia como jogo de soma zero, como se o rico tivesse ficado rico por meio da exploração do pobre. Steve Jobs teria ficado bilionário por conta da exploração de africanos, e por isso o estado deve intervir, assaltar a conta bancária do empreendedor, e doar para os mais necessitados. E chamam a isso de justiça!

Que o autor de linhas tão marxistas, ainda que disfarçadas e adaptadas para a era moderna, seja o presidente do Conselho Federal de Administração é algo que dá calafrios. Que fosse um professor de História, de Sociologia ou de Antropologia, ou então um jornalista da mídia mainstream, vá lá: isso já é o esperado no Brasil. Mas alguém que preside o CFA deveria saber melhor como funciona de fato o mundo corporativo e, principalmente, a realidade estatal, bem diferente dessa utopia imaginada por “intelectuais” sem contato com o mundo real.

Após ler o texto, ficamos com a nítida impressão de que ainda está tudo dominado, e que a mentalidade anticapitalista permeia diversas instituições. Livrar nosso país desse ranço marxista será tarefa árdua de gerações. Não podemos ter a pretensão de curar uma doença alimentada por décadas e décadas de uma só vez, num só golpe milagroso. Mostrar as vantagens do capitalismo e a moralidade da liberdade, assim como expor as falácias do intervencionismo com o intuito “redistributivista” tem sido meu esforço de vida, assim como a missão heroica do Instituto Liberal, do qual sou presidente do Conselho. Vamos seguir em frente nessa luta. Como fica claro, ela continua necessária.

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Rodrigo Constantino

Rodrigo Constantino

Presidente do Conselho do Instituto Liberal e membro-fundador do Instituto Millenium (IMIL). Rodrigo Constantino atua no setor financeiro desde 1997. Formado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), com MBA de Finanças pelo IBMEC. Constantino foi colunista da Veja e é colunista de importantes meios de comunicação brasileiros como os jornais “Valor Econômico” e “O Globo”. Conquistou o Prêmio Libertas no XXII Fórum da Liberdade, realizado em 2009. Tem vários livros publicados, entre eles: "Privatize Já!" e "Esquerda Caviar".

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