O teste Trump: o papel internacional do dólar
Uma exportação europeia para os EUA é tarifada em 5%, digamos; uma exportação dos EUA para a Europa é tarifada em 25% – em média 5 vezes mais, e então circulam muitos carros Mercedes nos EUA e poucos Cadillacs na Europa. Coisa similar acontece com outros países: os produtos americanos sendo bem mais tarifados. Além do mais, na Ásia, por exemplo, o custo da mão de obra é bem menor que nos EUA, inclusive porque lá a contribuição previdenciária incidente na relação de trabalho é menor, e há limites menos rígidos de horas de trabalho. Segundo Trump, essa assimetria gera um déficit comercial anual vultoso para os EUA, contínuo nos últimos 70 anos; e causa desemprego industrial.
Mas, afinal de contas, cada país deveria poder decidir, soberanamente, os seus regimes fiscal, tarifário e previdenciário. Se essas decisões acarretassem déficits comerciais para alguns e superávits para outros, as taxas de câmbio entre as moedas dos países se ajustariam de modo a zerar o desequilíbrio. Assim, o motivo do contínuo déficit comercial americano não são as assimetrias tarifárias, fiscais ou previdenciárias, mas sim a falta de ajuste da taxa de câmbio do dólar em relação às demais moedas. Enfim, o déficit americano, substancial há muitos anos, não tem acarretado a desvalorização do dólar. Mas por que um déficit comercial crônico não acarretaria desvalorizações cambiais, tornando os produtos americanos mais competitivos para a exportação? Simplesmente porque o resto do mundo demanda a moeda americana como divisa internacional.
De fato, o maior “produto de exportação” americano é a sua própria moeda. O dólar é “exportado” via déficit comercial dos EUA: o mundo envia bens e serviços com maior valor para os EUA e recebe, em troca, bens e serviços com menor valor, e mais os dólares correspondentes à diferença. Há também um déficit externo americano em conta de capital, que ocorreu na maioria dos últimos 50 anos; isso significa que os empresários americanos investem e adquirem ativos valiosos no resto do mundo, pagando em dólares.
Enfim, os EUA, ao emitirem a moeda cobiçada pelos demais países para compor suas reservas internacionais, recebem liquidamente bens e serviços do exterior e adquirem ativos no resto do mundo, pagando-os com “papel pintado de verde”. Os outros países recebem esse “papel verde” em troca de bens e ativos reais custosos de produzir. Em geral, aplicam os dólares recebidos na compra de títulos do Tesouro Americano. A demanda por tais títulos é tão grande que os juros reais pagos pelo Tesouro são pequenos, ocasionalmente negativos, permitindo que a imensa dívida pública americana, acumulada nas últimas décadas e decorrente de um orçamento governamental cronicamente deficitário, seja continuamente refinanciada a juros muitas vezes irrisórios.
É um arranjo internacional que o ex-presidente da França, De Gaulle, chamou de “privilégio exorbitante”: privilégio para o país cuja moeda nacional é também internacional. Isso porque esse país recebe bens e serviços do resto do mundo e adquire ativos no estrangeiro, pagando-os com “papel pintado de verde”. Esse privilégio está associado ao fato de que o dólar é a moeda internacional e se realiza através dos déficits do balanço de pagamentos dos EUA. Ele decorreu e decorre do tamanho da economia americana; e também de esse país ter instituições estáveis (as mesmas há muitos anos), possivelmente resistentes a arbitrariedades e extremismos. Ou seja, é um regime democrático liberal caracterizado por: oposição atuante e eleições periódicas livres, líderes com mandatos definidos e finitos, restrições a reeleições; os poderes governamentais, executivo, legislativo e judiciário, são independentes; há respeito aos contratos e há liberdade de empreender e inovar; há liberdade de opinião e os direitos das minorias, inclusive a menor delas, o indivíduo, são respeitados; a administração da justiça, em geral, segue regras previamente conhecidas e definidas; há governos locais não hierarquicamente submissos; e assim por diante.
Esse conjunto de características, que pode ser chamado de modelo político ocidental, evoluiu historicamente desde as revoluções inglesa, francesa e americana. Vêm sendo aperfeiçoadas há três séculos e têm grande importância econômica devido à confiabilidade que geram. No mundo atual, apenas países europeus ocidentais têm características próximas a estas; e a moeda europeia, o euro, certamente foi concebida também considerando suas possibilidades de se tornar uma moeda internacional (atualmente, vários países já acumulam divisas substanciais em euros). Esse aspecto, de estabilidade e confiabilidade, é uma garantia para os detentores de dólares e euros. Há grandes economias modernas cujo regime político, autocrático, torna problemática a internacionalização de sua moeda (seus dirigentes gostariam que fosse internacionalizada). Nesse sentido, pode-se dizer que o “privilégio exorbitante”, descrito por De Gaulle, é, na realidade, um “dividendo” para as democracias liberais; enfim, ser estável e confiável traz vantagens econômicas consideráveis.
Curiosamente, Trump vem tentando eliminar o déficit comercial e o investimento americano no exterior, pedindo aos empresários do país que voltem a investir nos EUA. Embora, aparentemente, não saiba, está propondo eliminar a “exportação de dólares”, ao não considerar que o déficit comercial e o investimento externo americano decorrem exatamente da vantagem de emitir a moeda internacional. Trump alega que defende o emprego dos americanos, em uma ocasião em que a taxa de desemprego nos EUA é pequena comparada a seus valores históricos. Na verdade, a economia americana desindustrializou-se com a globalização e a grande expansão do comércio mundial, usando o dólar como moeda internacional. O emprego industrial nos EUA se reduziu bastante, devido à globalização e à automação. Mas eles já desenvolveram uma economia de serviços e de indústrias tecnologicamente avançadas, o que empregou muitos americanos e imigrantes qualificados. Essa foi a evolução econômica recente daquele país, e não há nada de substancialmente errado ou desequilibrado com essa evolução.
Realmente, Trump não entende bem o que está fazendo e quer voltar ao passado. Claramente, falta-lhe assessoria competente (talvez não a deseje). Na verdade, sua atuação geral, além do tarifaço e do empenho em reduzir o déficit comercial, diminui a confiabilidade dos EUA. Está desmontando o arco de alianças internacionais americanas e prega a anexação territorial de alguns aliados. No caso do conflito ucraniano, propõe a divisão desse país em áreas de influência, uma parte ficando com a Rússia e os americanos explorando a riqueza mineral da outra parte. É uma proposta imoral, que lembra o pacto entre os nazistas e os comunistas no início da segunda guerra mundial: fizeram um acordo para a invadir e dividir a Polonia entre eles, e o implementaram.
Trump hostiliza o enorme comércio e os investimentos mútuos consequentes da divisão do trabalho entre os EUA e a China. Tal fato aumenta a eficiência e a riqueza material do mundo. Mas ele quer “desacoplar” as economias, é a favor do isolacionismo, embora essas relações sejam um seguro, até certo ponto, contra uma possível guerra mundial, a qual poderia levar à destruição da humanidade, pois os grandes interesses empresariais e comerciais, associados à relação EUA/China, tendem a impor a moderação na resolução dos conflitos (o que não acontecia na guerra fria entre os EUA e a União Soviética, pois os investimentos mútuos e o comércio entre esses dois eram bem reduzidos).
A atuação de Trump pode ter o efeito real de diminuir ou mesmo eliminar o papel do dólar como moeda internacional, assim que aparecer um substituto adequado. Os países não acumulariam mais divisas em dólar nem comprariam títulos do Tesouro dos EUA. Se isso acontecesse, o refinanciamento da imensa dívida pública americana seria ameaçado, embora o déficit orçamentário do governo americano deva aumentar com a política fiscal de Trump. Os EUA estão sendo rebaixados pelas agências internacionais de avaliação de risco, e o dólar tem se desvalorizado. Já está ocorrendo um aumento das taxas de juros nos mercados futuros, indicando possíveis dificuldades para o giro de uma dívida de 30 trilhões de dólares (aproximadamente 25% do PIB mundial, vinte vezes o PIB brasileiro). A confusão econômica e financeira decorrente não seria apenas nos EUA, atingiria o mundo todo.
Mas é possível que a atuação de Trump seja alterada, e exatamente pelas qualidades das democracias liberais; e ele acabe fingindo que não falou o que falou. Os retrocessos econômicos (recessão e inflação), amplamente divulgados pela imprensa e pelas redes sociais livres, a reação dos demais poderes governamentais e dos líderes estaduais e municipais, os interesses dos empresários, a divulgação livre da queda de popularidade, tudo isso pode levá-lo a alterar substancialmente sua atuação. Se isso vai ocorrer, com a intensidade e temporalidade suficientes, ou não, vai ser um grande teste: é o Teste Trump das instituições americanas!
“Antônio Carlos Porto Gonçalves é conselheiro superior do Instituto Liberal, graduado em engenharia industrial e metalúrgica pelo Instituto Militar de Engenharia e doutor em economia pela Universidade de Chicago.