Blockchain e o reforço da propriedade privada na era digital
A propriedade privada sempre foi a pedra angular da liberdade individual. De Locke a Hayek, de Bastiat a Mises, a tradição liberal compreendeu que a segurança da propriedade é pré-condição para o florescimento do indivíduo e para a ordem espontânea do mercado. John Locke, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, afirmava que a propriedade nasce da junção do trabalho do homem à terra e que a principal função do Estado é proteger tal direito. Friedrich Hayek, por sua vez, enxergava na inviolabilidade da propriedade o baluarte contra a tirania e o caos.
No entanto, à medida que o mundo se digitaliza, novas formas de interação, contrato e valor emergem, trazendo consigo o desafio de resguardar, validar e transferir propriedade em ambientes descentralizados, muitas vezes fora da jurisdição estatal. Nesse cenário, o blockchain não surge apenas como uma inovação técnica, mas como uma resposta institucional e moral à demanda por soberania individual em tempos de hiperdependência de estruturas centrais.
A tecnologia blockchain, descrita por Satoshi Nakamoto em 2008 como “um sistema peer-to-peer de dinheiro eletrônico”, rompe com a lógica tradicional de confiança delegada. Ao permitir o registro de ativos em um livro-razão público, imutável e distribuído, sem depender de bancos, cartórios ou governos, o blockchain devolve ao indivíduo a custódia sobre sua propriedade digital. Essa revolução, muitas vezes reduzida a entusiasmos técnicos ou promessas financeiras, é, na verdade, uma reafirmação do princípio liberal da responsabilidade: quem detém a chave privada detém o ativo. Não há espaço para tutela estatal ou para intermediações paternalistas. A liberdade, como sempre ensinou Ayn Rand, implica riscos, mas também dignidade.
No mundo analógico, o direito de propriedade é garantido por um emaranhado de registros, instituições e intermediários. No mundo digital, o blockchain codifica esse direito por meio de algoritmos criptográficos, permitindo que ativos como criptomoedas, tokens imobiliários, obras de arte digitais (NFTs) ou contratos empresariais existam e sejam transacionados sem necessidade de autorização de um terceiro. Em sua forma mais pura, como o Bitcoin, temos um ativo cujo controle só pode ser exercido por seu legítimo proprietário. Essa arquitetura técnica tem implicações morais profundas: ao eliminar a possibilidade de censura, congelamento ou revogação arbitrária, ela protege o indivíduo contra as fragilidades e os abusos das instituições centrais, especialmente em contextos autoritários ou falidos.
O mundo já testemunha essa proteção na prática. Em países como Venezuela e Argentina, onde os governos congelaram ativos ou colapsaram moedas nacionais, o Bitcoin tornou-se uma reserva de valor. Em regimes como o da Bielorrússia, ativistas usaram criptomoedas para fugir do bloqueio financeiro estatal. Na Nigéria, durante o movimento EndSARS, manifestantes migraram para stablecoins quando o governo congelou as contas bancárias de quem protestava. Esses casos não são exceções, mas sintomas de uma era em que a confiança nas instituições centrais vem se deteriorando e em que tecnologias descentralizadas oferecem uma alternativa baseada na autonomia e na inviolabilidade dos contratos privados.
Mais do que moedas, o blockchain possibilita a tokenização de ativos reais. Imóveis, ações, commodities e até obras de arte podem ser fracionados em tokens e distribuídos entre múltiplos proprietários, democratizando o acesso à propriedade e reduzindo custos de transação. Esse processo, chamado de tokenização, viabiliza a micropropriedade e empodera o pequeno investidor — algo que Ludwig von Mises certamente celebraria como uma extensão natural do mercado livre em sua capacidade de incluir e alocar recursos com eficiência. Além disso, estruturas como DAOs (Organizações Autônomas Descentralizadas) permitem que titulares de tokens participem de decisões coletivas com base em contratos inteligentes, recriando modelos empresariais, associativos e até políticos com base em governança voluntária e transparente.
Críticos alegam que o blockchain pode servir de instrumento para crimes financeiros, evasão fiscal ou fraudes. Tais riscos são reais, mas não exclusivos dessa tecnologia. A resposta liberal não é proibir ou censurar e sim responsabilizar. Assim como a liberdade de imprensa pode gerar fake news, mas continua sendo um direito fundamental, a liberdade econômica precisa ser preservada, mesmo quando abusada por alguns — desde que haja punição proporcional e justiça funcional. Proibir a tecnologia por medo do mau uso é anátema ao espírito da liberdade.
Além dos riscos legais, há também barreiras técnicas e educacionais. A gestão de chaves privadas exige conhecimento, disciplina e prudência — algo que a maioria das pessoas ainda não possui. Mas é justamente aí que o blockchain se revela um projeto pedagógico. Ao exigir responsabilidade pessoal, ele oferece a oportunidade de crescimento moral. Obriga o cidadão a assumir as consequências de suas decisões em vez de terceirizar culpas ou riscos a bancos, governos ou plataformas. Essa é a essência do ethos liberal: liberdade com responsabilidade, autonomia com consequência, propriedade com dever.
No horizonte, o blockchain representa mais do que uma revolução tecnológica: ele encarna uma reconstrução institucional baseada em valores liberais clássicos. Em um tempo de censura digital, intervenções estatais arbitrárias e hiperdependência de sistemas centralizados, ele nos convida a recuperar o controle sobre aquilo que é nosso por direito natural: nosso tempo, nosso trabalho, nossa propriedade. Por isso, o blockchain é uma cerca digital, uma escritura inviolável e um bastião de liberdade.
Essa percepção, antes restrita a entusiastas e inovadores, vem sendo gradualmente reconhecida por instituições estatais de democracias liberais. A Estônia, pioneira em governo digital, integrou o blockchain à infraestrutura de serviços públicos desde 2012, garantindo a integridade de registros médicos, judiciais e até de propriedade. Na Suíça, o cantão de Zug (conhecido como “Crypto Valley”) não apenas aceita pagamentos de impostos em Bitcoin e Ether desde 2021 como abriga dezenas de projetos regulados de finanças descentralizadas e tokenização de ativos, com suporte jurídico claro e transparente. Nos Estados Unidos, a Comissão de Valores Mobiliários (SEC) e a Commodity Futures Trading Commission (CFTC) intensificaram a regulação de ativos digitais, mas diversos estados, como Wyoming, criaram leis específicas para reconhecer legalmente DAOs, concedendo personalidade jurídica a entidades baseadas em contratos inteligentes — um passo sem precedentes na institucionalização da descentralização.
Esses movimentos indicam que a tecnologia blockchain não é apenas tolerada, mas adotada como infraestrutura crítica por democracias ocidentais comprometidas com a transparência, a soberania digital e a proteção da propriedade privada. Ainda que de forma incipiente e heterogênea, essas experiências provam que o blockchain pode coexistir com o Estado liberal, não como instrumento de controle, mas como alicerce de uma nova confiança institucional.
Ao colocar o poder nas mãos do indivíduo, reafirma-se que a era digital não precisa ser um tempo de servidão, mas pode, sim, ser um tempo de emancipação. Em vez de mais controle, oferece mais soberania. Em vez de mais regulação, mais liberdade. Em vez de mais tutela, mais propriedade. Em tempos sombrios para a liberdade, o blockchain reacende a esperança de uma ordem baseada na confiança voluntária e na ética da responsabilidade.
*João Loyola é Associado do IFL-BH.