Governo e Mercado, de Murray Rothbard
Power and Market (1970), de Murray Rothbard, talvez seja a primeira obra que define, em minúcia, os contornos conceituais do libertarianismo. O livro transcende um aspecto crucial comum ao liberalismo clássico e ao liberalismo praxeológico da Escola Austríaca: ele liberta o analista político-econômico da crença de que a ordem social depende da existência de um estado mínimo, monopolista da segurança. Diferentemente de expoentes liberais como Ludwig von Mises e Ayn Rand, Rothbard não se restringe a condenar o intervencionismo estatal na economia; vai além ao demonstrar de modo sistemático que o intervencionismo inevitavelmente ocorrerá enquanto persistirem, no meio social, os perversos incentivos gerados pelo monopólio legalizado da força.
Talvez Governo e Mercado não seja a melhor tradução da obra para o português. Opino que a tradução literal Poder e Mercado captaria de forma mais precisa o eixo argumentativo central do autor. Afinal, o livro demonstra que não há governo (senão desgoverno) no tipo de poder que o estado essencialmente representa: não o da governança, mas o da força. Sob tal perspectiva, o autor expõe, já no Cap. I, os argumentos lógicos para a substituição dos governos por um sistema natural de “serviços de defesa no livre mercado”. Não há base lógica para esperar-se a melhor oferta de segurança se tal serviço é um monopólio compulsório, diz Rothbard, “visto que o estado, ao contrário de outros indivíduos e instituições da sociedade, obtém sua receita não por trocas livremente firmadas, mas por meio de um sistema de coerção unilateral chamado de ‘tributação’” (p. 21-22).
Rothbard demonstra que o argumento liberal minarquista (do estado mínimo) não escapa de uma “contradição insolúvel”: a de que a adequada prevenção à desordem social consiste na “maciça invasão de propriedade pelo mesmo órgão (governo) que deveria proteger as pessoas da invasão!” (p. 22). O autor denuncia essa “falácia lógica” (p. 23) sem deixar de responder aos questionamentos mais comuns contra um sistema privado de defesa, a saber: “uma agência prestadora de serviços policiais privados não poderia usar a força para agredir os demais? Ou não poderiam os tribunais privados conspirar decisões fraudulentas e assim agredir seus clientes e vítimas?” (p. 26). O aspecto curioso de tais temores referentes à eventual ausência do estado é que eles descrevem com notável exatidão o próprio funcionamento histórico do estado, portador, segundo Rothbard, de um “desastroso registro histórico como o maior de todos os instrumentos de violência invasiva” (p. 22). A diferença entre a catástrofe privada e a catástrofe pública é que apenas a primeira pode ser interrompida pelo público que a financia voluntariamente, num ambiente de ampla oferta de serviços concorrentes. Em contraste, a catástrofe estatal permanece blindada pela coerção institucionalizada.
Longe de ser um irrealista, Rothbard admite que “não há garantias absolutas de que uma sociedade puramente mercantil não venha a se tornar vítima do crime organizado.” (p. 27). Ainda assim, argumenta que essa possibilidade não invalida a superioridade estrutural de uma sociedade regida pelo mercado. Prossegue o autor: “o conceito apresentado é bem mais funcional do que a ideia verdadeiramente utópica de um governo rigorosamente limitado; uma ideia que nunca funcionou na história” (p. 27). Nos capítulos subsequentes (de II a V), Rothbard faz uma revisão das inúmeras consequências negativas do intervencionismo estatal, em análises semelhantes às já descritas em sua grande obra Homem, Economia e Estado (1962) e no célebre Ação Humana (1949), de Mises, de quem foi aluno. A retomada mais vigorosa da dimensão propriamente libertária de Governo e Mercado ocorre no capítulo final do livro, dedicado à ética.
A palavra ética, derivada do grego ethos, significa um espaço ou entorno naturalmente adequado a um ser; ou, em termos culturais, um modo de comportamento condizente com a natureza humana. Ao propor uma “Análise praxeológica da ética” (Cap. VI), Rothbard busca descrever como o ser humano inevitavelmente atuará no meio social sob determinadas condições econômicas — mormente sob a condição de existência de um estado monopolista do poder coercitivo. Nesse contexto, em condições de monopólio forçado, é condizente com a praxiologia (estudo do comportamento humano por lógica dedutiva) que o produto desse ethos artificialmente criado apresente qualidade inferior e maior preço em relação a produtos similares oferecidos em situação de livre mercado. Trata-se de uma lógica inescapável, não apenas para o fornecimento de moeda, crédito, infraestrutura, educação e saúde (como admitem muitos liberais), mas também — e sobretudo — para os serviços de segurança e de justiça. São justamente estes últimos — o verdadeiro “ovo da serpente”, pois incubam a forma e a intensidade da coerção aplicada a todos os demais setores — os que irão determinar os níveis de intervencionismo na oferta de todos os demais serviços. Em suma, diz Rothbard, “sempre que for provada a impossibilidade conceitual de um objetivo ético, e este se mostrar, por conseguinte, ser absurdo, é igualmente absurdo tomar quaisquer providências para tentar se aproximar desse ideal” (p. 221-222).
O estado de bem-estar social cobrado dos agentes estatais é essencialmente um ambiente — um ethos — de cooperação e troca humana. Na busca desse ideal, a agressão legalizada (o financiamento forçado da governança via impostos) não encontra lugar ético real na sociedade, mas apenas formal (nominal). Mesmo que haja pessoas bem-intencionadas no serviço público (e há muitas), o ethos desse ambiente não as impele sistematicamente à promoção do bem-estar alheio. Com efeito, “qual incentivo que o especialista do governo tem para importar-se com os interesses dos cidadãos? Com certeza ele não é um ser especialmente dotado de elevadas qualidades por virtude da posição no governo” (p. 234), assevera Rothbard, para então concluir: “enquanto o especialista privado tem todo o tipo de incentivo pecuniário para importar-se com seus clientes ou pacientes, o especialista do governo não possui qualquer tipo de incentivo. Independentemente de sua atuação, receberá seu salário” (p. 225).
Como pensador tributário da Escola Austríaca de Economia, Rothbard inova ao introduzir o tema da ética na ciência da praxiologia. Ele consegue demonstrar que o componente ético pode ser abordado de forma racional e objetiva nas questões da vida em sociedade, já que a própria existência do estado é ordinariamente justificada (supostamente com critérios objetivos) por garantir um bem (um valor ético), materializado no fornecimento de segurança e justiça — isto é, para evitar um mal: a desordem e a violência. Considerando-se, porém, que tanto os agentes do estado quanto os cidadãos comuns participam igualmente da natureza humana capaz de realizar o bem e o mal, “em que altura, nessa mescla, a ordem estatal se torna necessária?” (p.229). Ou, dito de outro modo: se tanto governantes quanto governados compartilham as mesmas virtudes e fraquezas humanas, por que conceder a alguns o monopólio legítimo da coerção? A conclusão de Rothbard é contundente, na medida em que se apresenta de forma simples e irrefutável:
“Certamente, o libertário raciocinaria que o fato de a natureza humana ser uma mistura de bem e mal oferece o próprio argumento específico a seu favor. Pois, se o homem é tal amálgama, então a melhor estrutura societária é aquela em que o mal é desestimulado e o bem promovido. O libertário defende que a existência do aparato estatal fornece um canal fácil e rápido para o exercício do mal, já que os governantes do estado são, por intermédio de tais elementos, legitimados e podem exercer a coação de modos não permitidos a mais ninguém. O que é considerado socialmente como ‘crime’ é chamado de ‘exercício do poder democrático’ quando desempenhado por um indivíduo tido como representante do estado. O livre mercado total, por outro lado, elimina todos os canais legitimados para o exercício do poder sobre o homem” (p. 229).
O leitor contemporâneo certamente se impressionará com a universalidade (e atualidade) das considerações de Murray Rothbard em Governo e Mercado. Em um país marcado por inflação recorrente, insegurança jurídica e crescente descrença institucional, tais diagnósticos soam menos teóricos e mais como observações cotidianas. É cada vez mais nítida a percepção, em todas as classes sociais, de que nossos impostos são destinados a financiar os obstrutores de nossa liberdade de escolher, de produzir e consumir, de ir e vir, de se expressar e de planejar a vida econômica. Muito embora tenhamos sido criados numa cultura que assume — como ethos incontornável da convivência pacífica humana — a inevitabilidade do estado, as argumentações do aluno mais brilhante de Ludwig von Mises nos convencem de que o poder nas mãos do mercado (isto é, distribuído entre todas as pessoas) trabalhará de forma mais ética e efetiva para o bem-estar social do que o poder desnecessariamente concentrado nas mãos de poucos. Assim, para Rothbard, uma sociedade verdadeiramente livre não depende da benevolência de administradores públicos, mas de instituições cujo desenho incentive a cooperação pacífica — e não o domínio político.
ROTHBARD, Murray. Governo e Mercado. São Paulo: LVM Editora, 2023.
*Juliano Gaeschlin é sócio fundador da rede de pães artesanais Oh My Bread!, com presença no norte de SC e Curitiba (PR). É carioca, graduado em Desenho Industrial (UERJ), mestre em Literaturas Hispânicas (UFRJ) e doutor em Literatura Comparada (UFRJ). Mudou-se em 2015 do Rio de Janeiro para Joinville/SC em busca de melhor qualidade de vida; e para equilibrar a atividade intelectual com o empreendedorismo. Atualmente contribui com o Instituto Liderança e Liberdade (ILL) de Joinville para ajudar a formar líderes locais e contribuir com a difusão das ideias da Liberdade na região e no Brasil.



