Vamos falar de números, Moraes?
Foram três anos de discussões sobre uma série de arbítrios judiciais até então inéditos. Dia e noite, as mentes que ousaram manter a lucidez entre nós permaneceram ocupadas com os inquéritos e julgamentos midiáticos conduzidos por togados manifestamente incompetentes, com os processos criminais alheios à individualização das condutas, e com as penas desproporcionais em razão de um golpe jamais tentado. Ao final do processamento da dita “trama golpista”, quando a suprema corte tornou a violar a lei para decretar o trânsito em julgado do acórdão referente ao núcleo 1 e encarcerar seus integrantes o quanto antes, outro aspecto começou a ganhar os holofotes: as cifras milionárias impostas por Alexandre de Moraes e seus pares. Dentre outros perseguidos, Bolsonaro e aliados já foram condenados ao pagamento de R$ 30 milhões a título de supostos danos morais coletivos, enquanto membros da cúpula da polícia militar do DF acabam de ser garfados em R$ 6 milhões pela mesma verba. Qual a dimensão da atrocidade revelada por esses números?
Em primeiríssimo lugar, o caso desnudou a irresponsabilidade dos figurões com o patrimônio público. Após o 08.01, não se teve notícia do envio, por togados e/ou políticos, de qualquer aviso de sinistro a seguradoras, em um indicativo de que os prédios tombados e seu conteúdo histórico e artístico não fossem cobertos por seguros. Fora do guarda-chuva das apólices e, portanto, alheios à obrigação de demonstrar às seguradoras os efetivos prejuízos incorridos, nossos poderosos sacaram dos nossos cofres os milhões por eles declarados necessários aos reparos. Bem diferente do que teria ocorrido em uma minuciosa regulação de sinistro conduzida por companhias de seguros, o STF sequer precisou os custos das restaurações sob o argumento de que o trabalho teria sido “conduzido por servidores e colaboradores terceirizados” (segundo informações da CNN em janeiro de 2024). Em compensação, Alexandre de Moraes definiu com precisão cirúrgica todas as cifras estratosféricas impostas aos “seus” condenados, em canetadas descaradamente dissociadas da legislação, da razoabilidade e da ética.
Condenações penais também produzem efeitos civis, inclusive o de gerar a obrigação de indenizar em virtude de delitos. Pensemos, por exemplo, nos dependentes do indivíduo assassinado que exigem reparação do homicida, nas vítimas de golpes financeiros que pleiteiam indenização contra o estelionatário e por aí vai. Nesses casos, segundo o artigo 63 do Código de Processo Penal, as vítimas têm de aguardar que as sentenças criminais se tornem definitivas para, somente então, executarem a condenação na jurisdição cível. A redação da norma explicita a atuação de dois juízos distintos: o criminal, que condena o agente por seu delito, e o cível, que o compele a indenizar sua vítima. Contudo, Moraes, em mais um desrespeito a princípio jurídico básico, se arvora ao desempenho de ambos os papeis por sua “suprema” pessoa.
Em relação ao valor a ser arcado pelo criminoso, o artigo 387, IV do CPP impõe ao juiz o dever de fixar uma cifra indenizatória mínima, desde que esta tenha sido definida e pleiteada pelo ministério público por ocasião da propositura da ação penal (denúncia). Afinal, ao longo do processo criminal, o réu tem de ser capaz de exercer sua ampla defesa também no tocante ao prejuízo alegado, seja para refutar a existência do dano, seja para buscar reduzir seu valor. Nos assuntos do “golpe”, porém, a PGR do Dr. Gonet formulou pedidos indenizatórios genéricos, e Moraes houve por bem fixar valores milionários aleatórios, sem ter sequer se dado ao trabalho de mencionar os critérios objetivos e a metodologia de cálculo de somas impagáveis para a maioria esmagadora de nossa população.
Igualmente estarrecedora foi a natureza das verbas impostas pelo togado. Se o dano moral individual costuma ser definido como compensação pelo sofrimento injusto e pela dor da humilhação, o dano moral coletivo consiste na reparação pelo mal que afete uma coletividade em seus valores e interesses fundamentais. Exemplo dessa espécie de dano em nossa história recente foi dado pelos sinistros de Mariana e Brumadinho, que, para muito além das perdas materiais, privaram populações inteiras da sensação de conforto de seus lares e da própria noção de convívio social ordeiro.
Nos processos do “golpe”, no entanto, em que residiriam esses bens intangíveis coletivos supostamente afetados? Ainda que se tivesse tentado uma ação disruptiva contra o establishment, em que medida uma pretensa substituição violenta de um núcleo político por outro teria gerado abalo psicológico à população? Como falar em dano moral coletivo se a única vítima das depredações foi a União Federal, pessoa jurídica de direito público e, como tal, alheia às emoções humanas?
Em sociedades organizadas, indenizações se destinam à reparação de danos comprovados. Qualquer desvio dessa premissa importa no estímulo ao enriquecimento ilícito e às aventuras jurídicas destinadas à espoliação do patrimônio alheio. Em nosso cenário de extrema degradação jurídica e ética, a cúpula togada, em vez de dizer o direito, exerce seu poder para criar situações inconstitucionais e antijurídicas de insolvência perpétua, em que todos os rendimentos e remunerações dos condenados permanecem indisponíveis, pois alocados para o custeio dos milhões alexandrinos. Trancafiados por décadas e condenados em cifras estratosféricas, os ditos “inimigos da democracia” são privados do convívio de seus familiares e amigos e sofrem confisco patrimonial.
Vivenciamos o ressurgimento da pena cruel de morte civil, por meio da qual dissidentes são banidos da vida em todos os seus matizes e relegados à sina de autênticos zumbis, sem liberdade, sem lar e sem haveres. Tudo sob os aplausos da academia jurídica e sob o silêncio conivente do congresso e de órgãos autointitulados defensores dos direitos humanos. A hipocrisia é o tempero picante do nosso Zeitgeist autoritário.



