“Desestatização do Dinheiro”, de Hayek
Desestatização do Dinheiro, publicado em 1976, é uma das obras mais ousadas e antecipatórias de Friedrich Hayek, um dos principais nomes do liberalismo no século XX. O autor parte de uma tese provocadora: o Estado não apenas não precisa controlar a moeda, como é justamente esse controle que gera instabilidade, inflação e perda de confiança. Para Hayek, a solução não está em reformar o sistema estatal, mas em substituí-lo por um ambiente no qual moedas privadas concorram livremente pela confiança do público.
O livro é surpreendentemente direto. Hayek evita complicações desnecessárias e conduz o leitor por uma argumentação clara, quase didática, questionando a crença de que só o Estado pode garantir estabilidade monetária. Mesmo ao discutir temas como teoria do valor, inflação e política monetária, ele adota uma abordagem acessível, o que torna o texto mais fluido e compreensível do que o esperado para um assunto tão técnico.
O ponto central da obra é sua crítica ao monopólio estatal da moeda. Hayek argumenta que, ao controlar a emissão monetária, governos têm incentivos para expandir a oferta de dinheiro e financiar déficits públicos, provocando inflação e corroendo o poder de compra da população. Em seu modelo alternativo, instituições privadas poderiam emitir moedas próprias, e essas moedas competiriam entre si. As que mantivessem estabilidade e previsibilidade sobreviveriam; as que desvalorizassem seriam naturalmente rejeitadas pelo mercado, sem a necessidade de punição estatal — apenas pela perda de confiança.
Aplicada à realidade brasileira, a crítica de Hayek encontra terreno fértil. A história econômica do Brasil é marcada por décadas de hiperinflação, pacotes econômicos de emergência e sucessivas reformas monetárias que frequentemente penalizaram a população. Mesmo após a estabilização, a política monetária continua dependente de decisões políticas e sujeita a ciclos de expansão fiscal. A desvalorização do real frente ao dólar, fruto de fatores internos e externos, reflete exatamente o problema que Hayek descreve: o risco de confiar o valor da moeda ao arbítrio do Estado.
Curiosamente, a teoria de Hayek ganha nova vida com o avanço das criptomoedas. Embora ele não pudesse prever a tecnologia blockchain, seu argumento sobre moedas emitidas por agentes privados que concorrem por aceitação pública se materializou de forma impressionante com o surgimento do Bitcoin e outros criptoativos. O livro, que antes soava radical, hoje parece quase profético, antecipando um debate global sobre descentralização financeira, confiança digital e o papel dos bancos centrais no século XXI.
A crítica hayekiana também lança luz sobre características persistentes do Estado brasileiro. A intervenção econômica, os programas de estímulo financiados por endividamento, o controle cambial e a ineficiência estrutural reforçam o quadro descrito pelo autor. Hayek argumenta que, em um ambiente em que o Estado controla o dinheiro, sempre existirá margem para manipulação política e degradação da moeda, especialmente em países com histórico de instabilidade fiscal.
Um dos pontos mais instigantes da obra é o argumento de que a estabilidade surgiria justamente da concorrência privada. Ao contrário do temor de que múltiplas moedas criariam caos financeiro, Hayek defende que instituições privadas teriam fortes incentivos para manter sua moeda estável, pois sua sobrevivência dependeria disso. Assim, a disciplina não viria de leis ou coerção estatal, mas da reputação e da credibilidade — elementos que o monopólio estatal tende a enfraquecer.
Em conclusão, Desestatização do Dinheiro é um livro que desafia pressupostos profundamente enraizados sobre moeda, Estado e liberdade econômica. Hayek oferece uma crítica contundente ao sistema monetário estatal e convida o leitor a imaginar arranjos alternativos nos quais a estabilidade surge da concorrência e da responsabilidade e não da imposição estatal. Embora sua proposta exija transformações institucionais profundas e enfrente resistência prática, seu mérito está precisamente em expandir os limites do debate e mostrar que aquilo que parece imutável — o controle estatal da moeda — pode, sim, ser questionado e reinventado. A obra é, ao mesmo tempo, uma provocação intelectual e um convite à reflexão sobre o futuro do dinheiro em um mundo cada vez mais digital e descentralizado.
*Maria Almeida é administradora e contadora formada pelo IBMEC BH, com experiência em consultoria estratégica — processos e finanças — e em gestão da experiência do cliente no mercado financeiro. Atualmente, é head comercial, associada II do IFL-BH e cursa Direito na Faculdade Milton Campos, ampliando sua formação na área jurídica.



