O escândalo da BBC demonstra porque a imprensa é incapaz de arbitrar a verdade
O recente escândalo que levou à renúncia do então diretor-geral e da chefe de jornalismo da BBC é um tema que não pode passar batido. Muito mais do que uma questão institucional da empresa, trata-se de um padrão de parcialidade que deve nos fazer questionar não apenas a ética (nesse caso, a falta dela) editorial da emissora britânica, mas de certos setores da imprensa como um todo. Aos fatos.
Um memorando interno da BBC, elaborado por Michael Prescott para o Conselho de Diretrizes e Padrões Editoriais da BBC, teve seu conteúdo divulgado pelo também britânico Daily Telegraph. No documento, constam episódios significativos de parcialidade e manipulação da verdade.
O caso mais grave foi a exibição de um programa uma semana antes das eleições americanas contendo duas falas de Trump, proferidas em momentos distintos, mas editadas de modo a parecerem uma única fala, dando a entender que o presidente americano teria incitado a invasão do Capitólio em janeiro de 2021. Trata-se de grotesca farsa. A frase original, longe de incitar a violência, vai sem sentido oposto: “Vamos caminhar até o Capitólio e vamos aplaudir nossos bravos senadores e congressistas”.
Para além da tentativa de manipular o eleitorado americano às vésperas da eleição, o memorando também confessa um claro viés pró-Hamas e anti-Israel na cobertura da guerra. Prescott também acusa a BBC de divulgar informações falsas no que tange à proporção de crianças e mulheres palestinas mortas durante conflitos com militares israelenses. A postura pró-terrorismo é tão escancarada que chegaram ao cúmulo de chamar o filho de um ministro do Hamas para narrar um programa sobre a guerra em Gaza, sem, é claro, informar esse pequeno “detalhe” ao público.
Claro que o viés identitário também não ficaria de fora. Questões tidas como “difíceis” relacionadas às pessoas transgênero (leia-se, questões que desagradavam ao ativismo queer) eram ignoradas, ao passo que matérias sobre questões de gênero apresentavam visão unilateral, sem espaço para especialistas que poderiam divergir. Prescott também dá conta de que produtores de ao menos quatro programas da BBC tinham predileção por trazer acadêmicos não especializados, mas que se destacavam por expor narrativas simplistas e apelativas. Reporta-se, também, o hábito de divulgar material sobre supostos casos de racismo sem uma pesquisa sólida.
Insisto que o caso demanda nossa devida atenção, pois vivemos em tempos onde uma pretensa elite, da qual a imprensa faz parte, tem nos dito que carecemos de um controle do discurso, de um filtro, manejado direta ou indiretamente por agências de checagem de fato e veículos de mídia ditos profissionais para nos tirar de um limbo de desinformação.
Já dei reiteradas mostras de que tenho o maior respeito pela imprensa como instituição; sou, ademais, um defensor da liberdade de imprensa muito mais assíduo e obstinado do que muitos jornais têm sido desde 2019 neste Brasil varonil. Defendo diuturnamente a liberdade de expressão e de imprensa, que tantos jornalistas e conselhos editoriais colaboram para sepultar. Quando a imprensa cumpre seu papel de informar, ela exerce uma função indispensável como alicerce da democracia; eis a razão pela qual já afirmei alhures que, em que pesem as críticas (justíssimas) que eventualmente profiro contra veículo A ou B, o jornalismo profissional e ético segue sendo uma alternativa muito melhor do que “se informar pelo WhatsApp”. Contudo, também afirmo que, como qualquer instituição, a imprensa precisa “merecer” o respeito e ganhar a confiança do público, o que não acontece quando o povo — que não é tão tolo quanto pensam — vislumbra um apoio de diversos órgãos de mídia à censura. Esse escândalo da BBC escancara o quão distantes diversos veículos, veículos grandes, veículos que todos conhecemos, estão de merecer o respeito e serem dignos de nossa confiança. E sim, eu falo no plural; o escândalo só veio à tona por meio do vazamento de um memorando interno a outro jornal; pergunto-me: quantos veículos não adotam semelhante prática?
Conforme consta em um editorial do Estadão sobre o tema — produto daqueles sopros de sobriedade do jornal, quando os editores esquecem que têm sido acólitos dos desmandos do STF —, citando uma pesquisa do Reuters Institute, 77% dos jornalistas do Reino Unido se declaram de esquerda contra apenas 11% de direita. No Brasil, uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina revelou uma desproporção ainda maior: 80,7% de esquerda contra apenas 4% de direita. Já um levantamento feito pela revista The Economist dá conta de que 17 dos 20 principais órgãos de imprensa americanos se alinham ao Partido Democrata.
Ora, não pretendo sugerir que está vedado a um jornalista ser de esquerda. Antes de profissionais, somos seres humanos e é lícito que tenhamos nossas visões de mundo. Ocorre que tamanha desproporção (em total desalinho com a sociedade) não pode deixar de produzir seus efeitos. Uma coisa é um determinado veículo ter uma linha editorial definida e ser claro sobre isso com seu público. O que viola completamente a ética profissional é um veículo se pretender imparcial como veiculador de notícias, mas ludibriar o público, não sendo claro sobre a linha editorial adotada. Para além disso, mesmo veículos com linha editorial bem definida têm, antes de tudo, a responsabilidade de informar, doa a quem doer. Coberturas parciais ou simplesmente ignorar e se abster de publicar conteúdos de relevante interesse público não são coisa de jornal sério.
Só um piadista pode negar que a) a censura retornou e não apenas no Brasil (embora aqui seja provavelmente o caso mais avançado dentro das “democracias” ocidentais), b) que ela acomete desproporcionalmente a direita. A nível de Brasil, os desmandos do STF foram possibilitados em grande parte por um apoio, ora velado, ora aberto, de setores da imprensa que, mesmo hoje, não se constrangem em admitir que viam como justificáveis a imposição de medidas de exceção, ao arrepio da lei e da carta magna, contra o bolsonarismo. Já a nível internacional, a força motriz da censura tem sido principalmente o identitarismo de esquerda, visando, preferencialmente, alvos de direita — mas não só de direita, haja vista a perseguição contra a escritora J. K. Rowling —, novamente, também facilitado pelo pronto acolhimento de órgãos de imprensa. Em meu último artigo, demonstrei como farsas, como a de que o Brasil é o país que mais mata trans, são disseminadas com participação ativa da imprensa.
O cenário caótico em que vivemos, com a censura comendo solta, com ativismo judicial, com a disseminação em caráter oficial de fake news identitárias por aqueles que dizem combater as fake news, com toda uma cobertura midiática tratando a mais singela e comedida manifestação de direitismo como própria da “extrema-direita”, ou “ultradireita”, ou ainda do “ultraconservadorismo” e quejandos que honram a criatividade de jornalistas que chegam a afirmar que o “centrão é de direita”, sem nunca ou quase nunca recordar a existência da extrema-esquerda, autoriza-me a pensar que o caso da BBC passa longe de ser uma exceção.
Vou além: mesmo que todos os jornalistas, de esquerda ou não, fossem anjos que jurassem de pés juntinhos separar suas opiniões políticas do seu papel de informar, é pedir muito da natureza humana que, mesmo inconscientemente, o viés não se manifeste. É ilusório pensar que a imprensa seja majoritariamente imparcial quando há uma desproporção tão grande no perfil ideológico daqueles que tomam decisões sobre o que será ou não publicado e sobre como será publicado. Para além disso, a esquerda contemporânea é majoritariamente identitária, e é o identitarismo, com toda a sua baboseira de racismo estrutural, racismo recreativo, apropriação cultural, discurso de ódio e afins, o grande inimigo da liberdade de expressão a nível global hoje. Se a maioria dos jornalistas são de esquerda, se a maior parte da esquerda é identitária, se o identitarismo prega a “censura do bem”, é simplesmente lógico concluir que a maior parte dos jornalistas hoje são identitários e entusiastas da censura, bem como da manipulação dos fatos de modo a produzir sua própria verdade.
A solução, então, seria demitir jornalistas de esquerda e contratar de direita até se atingir um equilíbrio de, digamos, meio a meio, de modo que os vieses de ambos se cancelem e as notícias se tornem mais imparciais? Para além da inviabilidade, macartismo e autoritarismo da medida, a questão passa muito longe do alvo.
O problema não é só que haja manipulação da verdade (algo já muito grave); o problema principal é que os que manipulam são os mesmos que se arrogam, ou a quem se pretende conceder, o crivo sobre o que é verdade ou não. Alguém brada: o Estado precisa combater a desinformação. A lógica nos compele a inquirir: como o Estado pode ser o árbitro da verdade? Por qual meio? A provável réplica: com o auxílio de agências de checagem de fato e veículos de mídia profissionais. O caso da BBC fere de morte qualquer pretensão nesse sentido, não apenas como caso particular, mas porque desnuda a incoerência de dar a um grupo de pessoas com interesses próprios o poder de controlar — ou assessorar o controle — o discurso alheio.
Não há como confiar o crivo da verdade a ninguém, não sendo ela um objeto que possa ser encaixotado ou que possa ser posse de Fulano ou Beltrano. Se a imprensa está preocupada em combater a desinformação, comecem os veículos por checar a si mesmos, já que com tanta frequência são porta-vozes das mentiras mais deslavadas. Se querem recuperar o respeito do público, que adotem a ética como norte, se desfaçam do ativismo woke e se manifestem indubitavelmente contra qualquer forma de censura.
Fontes:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-escandalo-que-levou-a-saida-de-diretor-e-chefe-de-jornalismo-da-bbc/
https://www.estadao.com.br/opiniao/o-perigo-do-jornalismo-militante/



