Escola de Virgínia: um breve guia sobre a Escolha Pública

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Em uma curta frase, podemos definir a Escola de Virgínia ou Public Choice como a aplicação das ferramentas da ciência econômica à análise da tomada de decisão política. Se a economia do bem-estar social (welfare economics) é o ramo que estuda as falhas de mercado, podemos dizer que a Escolha Pública é o ramo da economia que estuda as falhas de governo.

Poderíamos dizer também que, enquanto a análise de políticas públicas estuda como o processo ideal na tomada de decisão política deveria ser, a Escolha Pública analisa como a tomada de decisão política realmente ocorre.

Esse campo de estudo tenta responder como eleitores, políticos, burocratas, servidores públicos e grupos de interesse decidem qual ação devem tomar dentro do cenário político e quais são os resultados dessas decisões no conteúdo das políticas públicas.

A ciência econômica tradicionalmente se dedicava a analisar como empresas e indivíduos alocam recursos. Com o surgimento da Escolha Pública, também passou a ser possível compreender como o governo aloca e utiliza recursos que estão sob o seu controle.

Essa ideia nasceu desafiando os pressupostos teóricos dominantes (a ortodoxia) no início da década de 1960. Até então, o Estado era comumente tratado como um agente neutro e benevolente, capaz de corrigir as falhas de mercado e promover o interesse público – ou, como se diz no Brasil: interesse nacional.

James M. Buchanan e Gordon Tullock desafiaram essa visão ao argumentar que o Estado não é uma entidade altruísta, mas sim o resultado das interações entre indivíduos que agem com seus próprios interesses, incentivos e restrições.

O processo político está sujeito ao mesmo tipo de comportamento que observamos no mercado. Assim, o chamado “interesse público” não passa de uma abstração: o que realmente existe são os interesses individuais das pessoas que compõem o público. O interesse de um grupo nada mais é do que o conjunto dos interesses individuais de cada um de seus membros.

Se aceitássemos a suposição ortodoxa da época, teríamos de acreditar que o indivíduo que age movido pelo autointeresse ao comprar no supermercado é uma pessoa diferente daquela que, ao votar, age movida pelo “interesse público”.

Rompendo com essa duplicidade, a Escolha Pública reformulou esse contraste entre a visão majoritária (homem autointeressado no campo econômico e altruísta na política) da época e a visão da Escola de Virgínia: o indivíduo que vai ao supermercado é o mesmo que vai à urna na época da eleição.

De modo análogo, as decisões também estão subordinadas ao indivíduo. A unidade de decisão é sempre o indivíduo e não o coletivo. Coletivos não são entes que tomam decisão. Todas as chamadas “decisões coletivas” são, na verdade, resultado de algum procedimento de votação que soma as escolhas individuais dos participantes.

Essa análise realista da situação vai ser chamada por Buchanan de “politics without romance” (política sem romance). A partir dessa nova análise, pode-se entender que, às vezes, as alocações dos recursos sob posse do governo podem ser utilizadas para satisfazer a interesses individuais.

Isso significa que a elite política e os grupos de interesse são capazes de se organizar e capturar políticas públicas em benefício próprio, ainda que, possivelmente, às custas da sociedade.

Esse fenômeno é possível porque, diferentemente do mercado, os órgãos governamentais não operam sob a lógica de lucros e prejuízos. Seus resultados são frequentemente distribuídos gratuitamente ou vendidos abaixo do custo.

Como os orçamentos são decididos pelo Congresso, os legisladores tornam-se, de certo modo, patrocinadores dos ministérios e departamentos, financiando essas agências na expectativa de obter benefícios políticos em troca dos recursos concedidos.

Dado que o lucro não existe no setor público, é mais apropriado analisar o comportamento burocrático como a busca pela maximização do orçamento, de modo análogo à forma como as empresas buscam maximizar seus lucros.

Entretanto, como não existe um sistema de preços que permita mensurar o valor do que o governo produz, é difícil determinar o valor real dessa produção. Além disso, como os recursos utilizados pertencem a terceiros e são empregados em benefício de outros, o incentivo para alocá-los da maneira mais eficiente possível é baixo.

Mesmo que os recursos sejam direcionados de formas com as quais parte da população discorde, as políticas públicas podem forçar a participação de todos, seja por meio do pagamento de impostos, seja por meio das regulações impostas pelos políticos.

Essa é a diferença essencial entre o mercado e o governo: no mercado, a única maneira de uma empresa obter dinheiro é se os consumidores voluntariamente aceitarem pagar. Os consumidores só aceitam a troca quando entendem que os benefícios superam os custos.

No governo, ao contrário do mercado de bens e serviços, onde as transações são baseadas em trocas voluntárias, o governo força os cidadãos a participar, mesmo quando acreditam que os custos são maiores que os benefícios recebidos.

Os resultados não diferem porque as escolhas sejam guiadas por motivações distintas, mas porque, nos mercados, consumidores e empresários, buscando seu próprio interesse, tomam decisões que afetam principalmente a si mesmos, enquanto, na esfera política, políticos, burocratas e eleitores, guiados igualmente por seus próprios interesses, tomam decisões que afetam sobretudo terceiros.

O processo político tende a agrupar pessoas diferentes de maneira relativamente homogênea. A supressão do juízo de valor individual e subjetivo dá lugar às escolhas padronizadas feitas pelo governo.

Enquanto o mercado permite que cada indivíduo manifeste suas preferências por meio de escolhas voluntárias, o processo político transforma decisões individuais em escolhas coletivas determinadas por coalizões entre políticos e grupos de interesse. Assim, o processo político tende a refletir não a soma dos interesses individuais, mas o equilíbrio de poder entre grupos organizados que competem por benefícios dentro desse sistema.

Essas são características inerentes ao regime democrático. O fato de que políticos precisam ser periodicamente reavaliados por meio das eleições faz com que se assemelhem aos empresários. Enquanto empresários buscam atrair consumidores, os políticos escolhem as políticas públicas tendo em mente o consumidor, que, nesse caso, é também o eleitor, que o recompensará com o seu voto na próxima eleição.

O eleitor, por sua vez, tem pouca informação. O custo de se informar sobre o processo político, buscar informação (tempo, esforço, estudo), é elevado, e a probabilidade de que um único voto altere o resultado é praticamente nula. Assim, ele age de forma racionalmente ignorante: não compensa investir recursos para compreender temas complexos e decisões de governo dado o baixo retorno individual dessa informação.

Cabe ressaltar, contudo, que o campo da Escolha Pública tem como foco estudar as falhas de governo sob uma perspectiva positiva e não normativa. Isso não implica defesa de regimes antidemocráticos ou até autoritários, mas o reconhecimento de que as instituições democráticas são compostas por indivíduos que reagem a incentivos.

A teoria da Escolha Pública ensina que devemos moderar nossas expectativas sobre a capacidade do governo, mesmo em regimes democráticos, de resolver todos os problemas sociais. Isso inclui a crença de que o Estado pode corrigir automaticamente as falhas de mercado.

A ideia de que o governo seria uma solução perfeita e infalível mostrou-se equivocada. Se a economia de mercado é imperfeita, o mesmo vale para o governo. A comparação correta, portanto, deve ser feita em bases simétricas: entre dois instrumentos igualmente imperfeitos de alocação de recursos — o mercado e o Estado.

Contudo, é importante pensar que o crescimento da área de controle do governo beneficia diretamente políticos e burocratas. Esse benefício não se limita ao aumento do poder monetário e do controle sobre orçamentos, mas também se estende à ampliação de sua capacidade de barganhar regulações, distribuir benefícios e desperdiçar recursos em favor de grupos que sustentam sua posição política.

Quanto maior o escopo de atuação do Estado, maiores são as oportunidades para a expansão desses ganhos políticos e burocráticos — o que cria incentivos internos para o crescimento contínuo do governo, mesmo que isso ocorra às custas da eficiência econômica ou da liberdade individual.

O grande debate que a Escolha Pública traz é: como a sociedade civil pode estabelecer regras e instituições capazes de conviver com o Leviatã sem permitir que ele cresça a ponto de esmagar a própria sociedade que o criou.

Essa é a essência do problema constitucional da Escolha Pública: construir regras de restrição do poder governamental que tornem possível a cooperação social sem conceder ao Estado autoridade ilimitada. O desafio, portanto, é equilibrar governabilidade e liberdade, reconhecendo que o mesmo poder que pode corrigir falhas de mercado pode também ser usado para explorar e oprimir.

Alguns conceitos-chave da Teoria da Escolha Pública:

Teoria da captura: o regulado regula o regulador. Ocorre quando legislações ou instituições são criadas com o objetivo de regular agentes ou setores econômicos, mas esses mesmos grupos acabam se organizando para influenciar e capturar o processo regulatório em benefício próprio. Nesse caso, “o regulado passa a regular o regulador”, distorcendo o propósito original da regulação. Assim, em vez de regular o setor, a regulação acaba protegendo ou concedendo privilégios para o(s) regulado(s).

Preferência revelada: como o governo tem dificuldade para saber a quantidade correta de bens ou serviços que deve oferecer aos indivíduos, pode acabar criando um incentivo para que as pessoas abusem desse uso. Como os custos não atingem diretamente quem o usa, acaba gerando uma alocação ineficiente de recursos.

Batistas e Batedores (Bootleggers and Baptists): teoria que mostra como coalizões improváveis podem apoiar uma mesma política pública por motivos distintos. Um exemplo clássico é o da Lei Seca nos Estados Unidos: grupos religiosos defendiam a proibição do álcool por razões morais (“os batistas”), enquanto contrabandistas e mafiosos lucravam com o mercado negro criado pela proibição (“os batedores”).

Pork Barrel (Barril de Carne de Porco): refere-se à prática de aprovar projetos públicos locais — como pontes, praças ou parques — que muitas vezes não têm real necessidade ou prioridade, mas servem para gerar empregos, popularidade e visibilidade política. O objetivo é fortalecer a base eleitoral e as relações políticas locais, ainda que o gasto público seja ineficiente.

Portas Giratórias (Revolving Door): refere-se ao movimento de pessoas entre o setor público e o privado. Um exemplo ocorre quando um regulador deixa o governo para trabalhar em uma empresa do setor que antes supervisionava, ou quando executivos de empresas passam a ocupar cargos públicos. Esse fluxo cria conflitos de interesse e possibilidades de captura regulatória.

Ciclo Político-Econômico: descreve como políticos manipulam a política econômica para maximizar suas chances de reeleição. Frequentemente, isso envolve expansão de gastos e benefícios públicos antes das eleições, seguida de ajustes fiscais e políticas impopulares após o pleito, quando o custo político já é menor.

Irracionalidade Racional: refere-se ao fato de que os eleitores têm incentivos para manter crenças políticas erradas ou ideológicas, já que o custo individual de estar errado é muito baixo. Assim, as pessoas tendem a sustentar visões emocionais, partidárias ou moralistas em vez de se basear em evidências ou raciocínio lógico.

Esses conceitos ilustram como a teoria da Escolha Pública busca compreender o funcionamento real das instituições políticas, mostrando que o processo decisório é guiado por incentivos, informação limitada e interesses individuais — e não por uma noção abstrata de “interesse público”.

Recomendações de leitura:

Português:

Como Funciona o Governo – Jorge Vianna Monteiro
Regras Do Jogo – Jorge Vianna Monteiro
Governo e Crise – Jorge Vianna Monteiro
Cálculo do Consenso: Fundamentos Lógicos da Democracia – James Buchanan e Gordon Tullock
Custo e Escolha: Uma Indagação em Teoria Econômica – James Buchanan
Para Além da Política. Mercados, Bem-estar Social e o Fracasso da Burocracia – William C. Mitchell
O Mito do Eleitor Racional – Bryan Caplan
A Ciência da Política – Adriano Gianturco
Uma Teoria Econômica da Democracia – Anthony Downs
A Lógica da Ação Coletiva – Mancur Olson
O Dilema da Democracia – Arthur Seldon
Falhas de governo: Uma Introdução à Teoria Da Escolha Pública – Gordon Tullock

Inglês:

Public Choice III – Dennis Miller
Bureaucracy and Representative Government – William A. Niskanen
Extortion: How Politicians Extract Your Money, Buy Votes, and Line Their Own Pockets – Peter Schweizer
The Social Dilemma: Of Autocracy, Revolution, Coup d’Etat, and War: 8
Democracy & Decision: The Pure Theory of Electoral Preference – Geoffrey Brennnan; Loren E Lomasky
The Invisible Hand of Peace: Capitalism, the War Machine, and International Relations Theory – Patrick J. McDonald
The Theory of Political Coalitions: W.H. Riker
Public Finance and Public Policy: Responsibilities and Limitations of Government – A. L. Hillman
The Political Business Cycle – William Nordhaus

*Adriano Dorta é estudante de Economia, com foco de pesquisa em Escolha Pública e Economia Política.

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