O mito do bem coletivo: por que toda política baseada em intenções termina em coerção
Toda tirania começa com um ideal. Nenhum regime nasce proclamando o mal; todos se justificam pelo bem que prometem. A história política do Ocidente é marcada por essa ironia moral: os projetos que mais falaram em justiça e solidariedade foram os que mais violentaram a liberdade. A política fundada nas intenções acaba inevitavelmente na coerção, porque o bem, quando monopolizado pelo Estado, perde sua dimensão ética e assume a forma de poder. O “bem coletivo” é o mito mais sedutor da modernidade, pois combina pureza moral com autoridade política. E é justamente essa combinação que o torna perigoso.
Eric Voegelin, em A Nova Ciência da Política, identificou essa tendência como o “imanentismo da salvação”. As ideologias modernas, segundo ele, são tentativas de trazer o paraíso à terra por meios políticos. O Estado passa a ser o instrumento da redenção humana, e os governantes, os novos sacerdotes de uma fé secular. Essa pretensão de corrigir o mundo transforma a política em religião e a divergência em heresia. A promessa de purificação social produz sempre o mesmo efeito: a criminalização do dissenso. O poder que se acredita moralmente legítimo não conhece limites, porque confunde a sua vontade com a vontade do bem.
Raymond Aron, em O Ópio dos Intelectuais, demonstrou que a crença no bem coletivo tem origem menos na razão do que no ressentimento. O idealista político, insatisfeito com a imperfeição do real, substitui a responsabilidade individual pela esperança de um sistema perfeito. Essa transferência de culpa e expectativa para o Estado alimenta tanto a tirania quanto a apatia. As pessoas abdicam da liberdade em nome da promessa de justiça e se tornam cúmplices do controle que as oprime. O moralismo político, travestido de altruísmo, serve para legitimar a expansão indefinida do poder.
Robert Nozick, em Anarquia, Estado e Utopia, desmontou a noção de que o Estado possa agir moralmente sem violar a liberdade individual. Toda tentativa de redistribuição coercitiva, afirmava ele, implica tratar as pessoas como meios para fins coletivos. O problema ético é evidente: quando o bem comum exige a violação da propriedade ou da consciência, ele deixa de ser bem. A coerção, por mais piedosa que pareça, destrói o princípio básico da dignidade humana, que é a autonomia. O Estado moralmente virtuoso é, por natureza, um Estado que não respeita limites.
Michael Oakeshott, em Rationalism in Politics, explicava essa tendência como o erro da “razão construtivista”. Governos movidos por intenções racionais e utópicas acreditam que a sociedade pode ser redesenhada de cima para baixo, como se fosse um mecanismo previsível. Ignoram que as relações humanas são complexas, evolutivas e imperfeitas. Quando o poder político tenta impor um ideal de justiça absoluta, precisa eliminar a espontaneidade social e a diversidade moral que o desafiam. O resultado é o governo dos planejadores sobre os cidadãos e o desaparecimento gradual da liberdade sob o pretexto da ordem.
Reinhold Niebuhr, teólogo e filósofo político, via nesse fenômeno a manifestação do “orgulho moral das coletividades”. Em A Ironia da História Americana, ele observou que o homem, consciente de sua falibilidade individual, torna-se paradoxalmente arrogante quando age em nome de grupos ou nações. O coletivo se julga mais virtuoso que o indivíduo, e é essa sensação de pureza que autoriza os piores abusos. Ao se acreditar guardião da moral, o Estado deixa de ser instrumento de justiça e passa a ser fonte dela. Assim, o poder político, que deveria conter o mal humano, se transforma no seu principal veículo.
James Buchanan, economista e pensador do liberalismo constitucional, reforçou esse diagnóstico ao afirmar que as boas intenções são irrelevantes sem limites institucionais. Em The Limits of Liberty, ele demonstrou que o Estado, mesmo em regimes democráticos, tende a crescer indefinidamente quando suas ações são justificadas por finalidades morais. O discurso do bem coletivo cria incentivos perversos: políticos ganham poder ao prometer virtude, e cidadãos perdem autonomia ao aceitá-la. A coerção surge não de uma conspiração, mas da soma das boas intenções com o egoísmo disfarçado de solidariedade.
O Brasil vive sob esse mito desde sua fundação. Aqui, o Estado nunca se apresentou como guardião da liberdade, mas como tutor moral da sociedade. As políticas públicas são legitimadas não pelos resultados, mas pela intenção declarada de “ajudar”. O cidadão aceita o intervencionismo como gesto de compaixão e a burocracia como prova de zelo. Quanto mais o Estado promete cuidar, menos o indivíduo se sente responsável por si mesmo. O paternalismo substitui a virtude pessoal, e a servidão voluntária é celebrada como cidadania. Trata-se da mais eficiente forma de coerção: aquela que se disfarça de bondade.
A coerção das intenções não precisa de violência explícita. Ela opera por meio da linguagem, da culpa e do medo moral. O cidadão aprende que questionar políticas “do bem” é sinal de insensibilidade e que resistir à regulação é egoísmo. Assim, a coerção se torna simbólica e cultural. O Estado moral impõe não apenas leis, mas sentimentos. O indivíduo deixa de ser responsável por suas ações e passa a ser avaliado por sua conformidade às virtudes oficiais. O resultado é uma sociedade emocionalmente domesticada e intelectualmente imatura.
Toda política fundada em intenções absolutas termina inevitavelmente na supressão da liberdade, porque o bem, quando definido por um poder central, exige submissão. O verdadeiro critério moral não está nas intenções, mas nos limites. A civilização só é possível quando o Estado reconhece que não pode transformar a natureza humana, apenas conter seus excessos. A virtude política está em aceitar a imperfeição, não em tentar superá-la pela força. A história mostra que, quanto mais o governo promete redenção, mais ele entrega coerção.
A defesa da liberdade não é uma recusa ao bem, mas uma forma de protegê-lo da corrupção do poder. O bem só é autêntico quando nasce da consciência individual, não da imposição coletiva. O Estado moralmente neutro é o único que permite a existência de uma sociedade moralmente rica. O mito do bem coletivo, ao contrário, destrói a ética ao transformá-la em política. É no campo da liberdade que o homem encontra a verdadeira responsabilidade, e é apenas na ausência de coerção que a virtude pode florescer.



