Da tolerância à intolerância: o paradoxo da virtude no século XXI
A promessa da modernidade foi a de libertar o homem das amarras da censura e da tirania moral. O século XXI, contudo, transformou essa promessa em seu oposto. A tolerância, outrora concebida como virtude do espírito livre, tornou-se instrumento de coerção social. Sob o pretexto de proteger sensibilidades e grupos minoritários, o moralismo progressista impôs uma nova ortodoxia cultural, na qual o dissenso é visto como ofensa e o debate, como ameaça. A liberdade, que antes se afirmava contra o dogma, agora é cerceada em nome da virtude. A sociedade aberta, que deveria acolher a diversidade de ideias, se fecha em torno da uniformidade emocional.
Roger Scruton descreveu esse fenômeno como a “inversão moral da modernidade”. Segundo ele, o Ocidente vive uma era em que a busca pela virtude pública substituiu a ética pessoal, e a demonstração de sensibilidade passou a valer mais do que o exercício da razão. A compaixão, convertida em espetáculo, transformou-se em critério de poder. O indivíduo virtuoso já não é aquele que age corretamente, mas o que sente da maneira esperada. O moralismo contemporâneo, portanto, não reprime por ignorância, mas por convicção moral. Ele se vê como superior justamente por acreditar agir em nome do bem.
John Stuart Mill, em Sobre a Liberdade, advertia que a coerção moral exercida pela opinião pública pode ser mais devastadora que a tirania política. O poder invisível do consenso, dizia ele, é o maior inimigo do pensamento independente. Essa advertência ecoa no presente. As redes sociais, convertidas em arenas de vigilância moral, substituíram os antigos tribunais religiosos. Cada palavra, gesto ou silêncio é avaliado segundo um padrão emocionalmente volátil, e a mera discordância é tratada como violência simbólica. A cultura do cancelamento não é um desvio do ideal progressista, mas sua consequência lógica: o desejo de eliminar o desconforto por meio da supressão do outro.
Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, foi frequentemente citado para justificar a censura de opiniões “intolerantes”. No entanto, sua advertência foi deliberadamente distorcida. Popper defendia o combate à intolerância ativa, aquela que busca destruir a liberdade pela força, e não a proibição de ideias incômodas. O progressismo contemporâneo, ao contrário, inverteu o princípio. Passou a tratar qualquer discordância ideológica como intolerância, e qualquer crítica moral como discurso de ódio. Assim, o pluralismo se dissolve em uniformidade, e a tolerância se autodestrói em nome da pureza moral.
Jonathan Haidt, em A Mente Moralista, explica essa mutação como um processo de tribalização moral. As causas políticas se transformam em identidades, e as identidades em absolutos morais. Quem não adere plenamente a uma causa é visto como traidor, e quem a questiona é expulso da comunidade moral. Essa dinâmica se manifesta com clareza dentro dos próprios movimentos sociais que nasceram em nome da liberdade. O movimento LGBT, por exemplo, que surgiu como expressão legítima de resistência à perseguição e à opressão, tornou-se, em parte, vítima de seu próprio sucesso.
O que antes foi um grito por liberdade transformou-se em um aparato institucional de vigilância simbólica. O indivíduo que se define como gay, lésbica ou bissexual, mas que discorda de determinadas pautas políticas, como a ideologia de gênero, a linguagem neutra ou a defesa da medicalização infantil, passa a ser tratado como herege interno. Artistas, intelectuais e militantes históricos que defendem a autonomia do pensamento individual são silenciados ou rotulados de “reacionários”. Assim, a diversidade de opiniões dentro do próprio grupo é sufocada pela imposição de uma ortodoxia moral, que substitui o direito de ser diferente pelo dever de pensar igual.
A ruptura é visível. Um movimento que nasceu pela tolerância tornou-se instrumento de intolerância. A luta por reconhecimento cedeu lugar à exigência de submissão. Em vez de unir pessoas sob a bandeira da liberdade, passou a dividir a sociedade entre os moralmente puros e os moralmente impuros. É um processo de degeneração moral já descrito por Tocqueville em A Democracia na América: quando a igualdade se transforma em culto, ela não busca apenas eliminar a injustiça, mas nivelar as consciências. O desejo de inclusão dá lugar à exigência de conformidade.
Essa lógica não se limita ao campo da sexualidade. Ela permeia o discurso ambiental, racial, feminista e político, todos transformados em sistemas de pureza moral. O ativismo contemporâneo, ao se desconectar da realidade concreta e abraçar a moral como espetáculo, passa a funcionar como uma religião secular. Substituiu-se a figura do pecado pela do preconceito, o confessionário pelo cancelamento e o dogma pela narrativa. Em vez de produzir emancipação, cria-se dependência emocional e intelectual de um consenso imposto. A liberdade é tolerada apenas enquanto reforça a narrativa dominante.
O paradoxo é que a nova intolerância não nasce da ignorância, mas da crença de estar fazendo o bem. O censor moderno não se vê como opressor, mas como guardião da virtude. É exatamente por isso que seu poder é mais perigoso: ele atua com a convicção moral dos que se julgam redentores. O resultado é um ambiente em que pensar por conta própria exige coragem equivalente à dos dissidentes políticos do passado. O livre-pensador volta a ser um suspeito moral, e a coragem intelectual, um ato de resistência.
A tolerância autêntica, contudo, é incompatível com a busca pela unanimidade. Ela exige maturidade, capacidade de conviver com o desconforto e respeito pela autonomia do outro, mesmo quando suas ideias nos desagradam. Como dizia Voltaire, “posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo”. Essa é a essência da civilização liberal, hoje ameaçada por uma moralidade que prefere o silêncio à controvérsia. A verdadeira virtude não está em evitar o conflito, mas em suportá-lo sem destruir o interlocutor.
A sociedade que confunde sensibilidade com justiça e virtude com obediência moral caminha para uma nova forma de servidão. A tirania do bem é mais eficiente que a tirania da força porque se disfarça de compaixão. A liberdade, para sobreviver, precisa ser mais do que um direito político; precisa ser um valor moral. Enquanto o Ocidente continuar punindo o pensamento livre em nome da virtude, repetirá, com novas palavras e novas causas, o velho drama humano: o de transformar a fé em poder e a moralidade em instrumento de dominação.



