A questão dos banheiros para pessoas trans sob uma ótica liberal (Parte1)
Não é de hoje que há uma querela sobre o uso de banheiros por pessoas auto declaradas trans. Mais especificamente, a controvérsia maior se dá com a possibilidade de uso de banheiros femininos por mulheres trans. Sendo mulheres trans, a despeito de sua dita “identidade de gênero”, homens, do ponto de vista biológico, a questão se resume a um incômodo por parte de mulheres e meninas (incluindo pais de meninas) em dividirem o banheiro com pessoas do sexo oposto. Ora, o banheiro é justamente um espaço resguardado, íntimo, razão pela qual há, nos mais diversos espaços, uma separação entre banheiros femininos e masculinos. Tal separação não ocorre apenas por uma questão de conveniência e conforto, mas também segurança. Já pararam para pensar que raramente a controvérsia sobre homens trans (mulheres biológicas) usarem banheiros masculinos surge? Isso se dá porque, do ponto de vista biológico, uma mulher, seja por óbvias questões genitais, seja por inferioridade em força física, representa um risco muito reduzido a homens em tal espaço, relação que é totalmente invertida quando falamos de mulheres trans (homens biológicos) usando banheiros femininos.
Se inicio a análise elencando os pontos supracitados, é porque convém dar o maior destaque possível ao “outro lado”, ao lado que tem sido solenemente ignorado pelos entusiastas do identitarismo, isto é, as mulheres e meninas, forçadamente silenciadas pela agressividade militante que trata qualquer divergência como “transfobia”.
As justificativas em prol do uso de banheiros femininos por mulheres trans, nós já conhecemos, pois, a despeito da retórica vitimista, a visibilidade ao discurso identitário, em especial ao ativismo trans (o tipo de identitarismo mais na moda hoje) é imensa. Não pretendo, com isso, invalidar o mérito dos argumentos da esfera trans. Para alguém que realmente (muita atenção para o realmente) sofre com o transtorno de disforia de gênero, viver uma vida social, dentro do possível, como se fosse realmente do sexo oposto pode ser uma necessidade, e não é uma surpresa que isso inclua também a reivindicação do uso do banheiro do sexo com o qual essa pessoa se identifica. Em face disso, há também um grande número de pessoas, incluindo mulheres, que, mesmo sem qualquer conexão com o ativismo trans, dizem não ver problemas em dividir o banheiro com alguém do sexo oposto desde que se trate de uma pessoa trans. Diante disso, urge analisar alguns pontos.
Se uma mulher não se sente incomodada em dividir o banheiro com uma mulher trans (homem biológico), ela está, no máximo, em uma situação de neutralidade, não sentindo desconforto, seja com a presença ou a ausência de uma pessoa trans naquele espaço: se ela é indiferente ao uso do banheiro por uma pessoa trans, não lhe fará diferença se o ambiente onde ela se encontra permite ou não o uso do banheiro feminino por pessoas trans. Já para uma mulher que se sente desconfortável com tal situação, o sentimento não é de neutralidade, pois a presença de uma pessoa trans ali lhe provocará desconforto. Disso, podemos concluir que o fato de haver mulheres que se posicionam a favor de dividirem o banheiro com mulheres trans em nada deslegitima o mérito das que se opõem. É, aliás, uma grande contradição que feministas (excetuando as que são criticas ao ativismo trans) aquiesçam em tratar a expressão de um desconforto por parte de outras mulheres como um sintoma de “transfobia”. O verdadeiro sintoma aqui é de como outros movimentos de caráter identitário foram tragados pelo ativismo trans: de repente, vemos mulheres calando outras mulheres em nome da ideologia de gênero.
Outro ponto é que muitas das mulheres que se posicionam a favor o fazem em teoria, já que nunca passaram realmente pela situação de deparar com um homem em seu banheiro. Isso se conecta com outro ponto. Inicialmente, o que temos em mente, quando falamos de pessoas trans, são homens biológicos que se identificam como mulher e se caracterizam como tal, sinalizando claramente uma “feminilidade”, ou então mulheres biológicas que, se identificando como homens, procedem da mesma forma e sinalizam sua “masculinidade”. Nesse caso, apesar de serem pessoas vivendo uma vida social com uma identidade diferente da do seu sexo biológico, elas ainda estão inseridas em uma dualidade sexual. Pode acontecer, então, de uma mulher entrar em um banheiro e encontrar alguém cujos traços físicos apontam ser um homem, mas trajado com roupas femininas, usando maquiagem etc. Compreendendo que se trata de uma pessoa trans, talvez essa mulher, que pode ter uma veia bastante “inclusiva”, logre vencer qualquer desconforto e aceite de bom grado aquela presença. Em outros casos, a “transmutação” é tão perfeita que pode ser até mesmo impossível perceber, ao menos à primeira vista, que se trata de uma pessoa trans.
Ocorre que a agenda queer nunca se satisfez com essa dualidade. Na realidade, o movimento woke tem como mote a substituição do conceito biológico e científico de sexo pelo conceito social e pseudocientífico de gênero. Como a biologia reconhece dois sexos, mas para eles há infinitas possibilidades de “gênero”, já era de se imaginar que isso culminaria no que estamos vendo hoje. Numa ponta, tentam apagar o que significa ser mulher, reduzindo-as a termos como “pessoas que menstruam” ou “pessoas que gestam”, enquanto, na outra, surge o “gênero fluído”, os “não binários”, os “agêneros” etc. Se antes se clamava por uma dualidade na qual portadores de disforia de gênero pudessem viver vidas sociais mais funcionais, hoje tudo é, literalmente, muito mais “fluido”. Já me deparei, e pode ser que o leitor também, com homens que se declaram mulheres trans, mas que, propositalmente, dispensam qualquer traço de feminilidade. Literalmente homens, sem qualquer traje ou acessório que denuncie sua “identidade de gênero”, a qual só descobrimos quando, com uma voz perfeitamente masculina, dizem que preferem ser tratados com um nome puramente feminino e com pronomes também femininos. Nesse cenário, uma mulher, mesmo uma com uma veia bastante inclusiva, pode, por ventura, entrar em um banheiro, dar de cara com um marmanjo barbado, com toda uma indumentária masculina, mas, não obstante, disposto a armar um escândalo se ela decidir chamar o segurança.
Uma pessoa de “gênero fluido” poderia, na segunda, decidir ser homem e usar o banheiro masculino, mas, na terça, se sentir mulher, usar o banheiro feminino e assim por diante. Se isso soa uma maluquice, meus caros, é porque é. Entretanto, tanto os ativistas quanto os entusiastas da coisa talvez pensem que nossa dificuldade em não ver como natural que alguém possa mudar de gênero como muda de roupa ou que um homem com feições e indumentária masculina possa usar livremente o banheiro feminino é um sintoma não apenas da nossa “transfobia”, mas da limitação de nossas mentes. Nesse sentido, teríamos mentes atrasadas, incapazes de compreender e aceitar o que seria um inelutável caminho do “progresso”. Como alguém que se considera um verdadeiro progressista e que critica o identitarismo, justamente por ele, ironicamente, ser antagônico ao progressismo, já que identitários vivem a negar o progresso e as virtudes da democracia liberal, sinto-me confortável para dizer que isso é um grande devaneio. Ciente que sou da natureza perene das ideias e que este artigo, assinado por mim, estará aí por muito tempo para que seu conteúdo seja confrontado com a realidade futura, para que seja posto à prova, e, me dispondo desde então a admitir eventuais equívocos, afirmo que não contemplo um momento no decurso do tempo no qual todos estarão de acordo e verão como normal que homens façam uso de banheiros femininos ou ainda que os banheiros se tornem única e exclusivamente mistos. Vamos dar tempo ao tempo e ver quem tem a razão.
Não podemos ignorar, nessa discussão, o elemento da atração sexual. Muitos têm a ideia, equivocada, de que um homem biológico que se identifica como mulher sentirá, necessariamente, atração sexual por outros homens. Tal pensamento, frequentemente desmistificado pelo próprio movimento trans, ironicamente, pode fazer com que muitos sejam receptivos ao uso de banheiros femininos por mulheres trans, já que estas não representariam uma ameaça, já que não se sentiriam atraídas por mulheres biológicas. Ocorre que uma mulher trans pode, perfeitamente, se sentir atraída por mulheres, isso sem falar daqueles que se identificam como não-binários, de gênero fluido etc. Ora, se há uma divisão de banheiros justamente para resguardar a intimidade e dar, principalmente, segurança às mulheres e meninas, de impedir que elas possam ser alvos de violações, por óbvio de homens que se sentem sexualmente atraídos por elas, tal raciocínio não é anulado quando o homem em questão se define como uma pessoa trans.
Por fim, é mister fazer um adendo. Não pretendo sugerir aqui que homens são por si só um risco às mulheres ou, como afirmam feministas radicais, “estupradores em potencial”. Muito provavelmente, as mulheres não teriam nada a temer da maior parte dos homens biológicos, mas basta que tenham a temer de uma minoria para que a necessidade por um espaço resguardado para fazer suas necessidades fisiológicas se justifique, do contrário, poderíamos muito bem abortar a discussão e tornar todos os banheiros mistos.
Considerando todos os pontos e o fato de que a querela já não se restringe à esfera social e cada vez mais (como sempre ocorre com pautas identitárias) o Estado é chamado a participar, cumpre questionar: qual seria a abordagem jurídica e legal dentro de uma ótica liberal?
(Continua…)