Municípios em crise: o panorama
Os dados mais recentes do Índice FIRJAN de Gestão Fiscal escancaram uma realidade incômoda: boa parte dos municípios brasileiros não é economicamente viável. Mais da metade das cidades do país apresenta baixa autonomia para custear suas próprias despesas, dependendo quase que integralmente de transferências federais e estaduais. Em 2024, cerca de 36% dos municípios estavam em situação fiscal difícil ou crítica, representando aproximadamente 46 milhões de pessoas. O quadro é ainda mais dramático em regiões como a Bahia, onde mais de 70% das cidades se encontravam em situação crítica. Já no Norte e no Nordeste, em média, sete em cada dez municípios não possuem receitas próprias suficientes para pagar sequer a folha de pessoal, escancarando um modelo federativo que multiplica unidades administrativas sem que estas tenham sustentação econômica real.
Essa crise não é episódica, mas estrutural. Desde 2013, quando a FIRJAN começou a acompanhar de forma sistemática a situação fiscal dos municípios, o índice mostra uma persistência de desequilíbrio. O que se observa é que, mesmo em anos de crescimento da arrecadação nacional, milhares de cidades não conseguem reverter o quadro crônico de dependência e baixa capacidade de investimento. Em muitas delas, mais de 60% da receita corrente líquida é comprometida apenas com folha de pessoal, aposentadorias e encargos, sobrando quase nada para obras ou serviços essenciais. O investimento médio per capita em 2024 foi de R$ 857 por habitante, mas, em diversas cidades do Norte e Nordeste, esse valor não chegou a R$300, o que é insuficiente para manter qualquer política de infraestrutura ou desenvolvimento econômico.
Esse cenário é resultado, em grande parte, da chamada “indústria da emancipação”, que ganhou força nas décadas de 1980 e 1990, quando centenas de municípios foram criados mais por conveniência política do que por viabilidade econômica. O país ultrapassou a marca de 5.500 cidades, muitas delas com menos de 5 mil habitantes, incapazes de sustentar minimamente sua própria máquina administrativa. Essas localidades vivem de repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), não arrecadam tributos em volume significativo e acabam mantendo estruturas caras e ineficientes (prefeitos, câmaras de vereadores, secretarias) sem entregar serviços adequados à população. Um dado incrível (e assustador) é que um total de 1.282 municípios não geram receita nem para pagar o salário do prefeito e dos vereadores, quem dirá da estrutura municipal como um todo.
No entanto, existem exemplos que mostram que é possível romper essa lógica e alcançar excelência. Maringá, no Paraná, é referência em planejamento urbano, sustentabilidade fiscal e qualidade de vida. Joinville, em Santa Catarina, consolidou-se como polo industrial competitivo e equilibrado. Sobral, no Ceará, tornou-se modelo nacional em educação e gestão pública, provando que, mesmo em estados de baixo desempenho médio, é possível adotar estratégias de longo prazo e colher resultados. O Rio Grande do Sul, como conjunto, ilustra a diferença regional: em 2024, quase 90% de seus municípios estavam em situação fiscal boa ou excelente, com nota média de 0,75 no IFGF, 15% acima da média nacional. A chave está na combinação de diversificação econômica, arrecadação eficiente e responsabilidade administrativa.
Em contraste, estados como a Bahia apresentam índices inversos, com mais de dois terços das cidades em situação crítica. Esse abismo demonstra que a qualidade da gestão e a estrutura econômica local são determinantes. Municípios com atividade produtiva diversificada, integração logística e mercados consumidores ativos conseguem escapar da dependência; já aqueles que se apoiam quase exclusivamente em transferências federais permanecem presos ao ciclo da pobreza institucional.
Nesse contexto, uma proposta ousada precisa ganhar espaço: tratar o município como um CNPJ. Assim como empresas, cidades deveriam ser responsabilizadas pela sua sustentabilidade financeira. Quando uma prefeitura se mostra incapaz de se sustentar, vivendo apenas de repasses e sem oferecer serviços básicos, poderia ser considerada insolvente e incorporada a um município vizinho com maior eficiência e escala administrativa. Essa ideia não é apenas provocativa: ela já foi testada em outras partes do mundo.
Em 2007, a Dinamarca realizou uma ampla reforma que reduziu o número de municípios de 271 para 98, criando unidades mais fortes e capazes de prestar serviços públicos com eficiência. Portugal e Japão também promoveram processos de fusão municipal para garantir viabilidade econômica e reduzir custos administrativos. No Brasil, a Constituição prevê mecanismos de fusão ou incorporação de municípios, desde que haja plebiscito e lei estadual, mas esses instrumentos quase nunca são usados, porque a política local se sustenta na multiplicação artificial de cidades e cargos. O resultado é um sistema caro, ineficiente e, em muitos casos, incapaz de honrar obrigações básicas como pagamento de fornecedores, previdência própria ou precatórios.
Os ganhos potenciais de um processo de incorporação de municípios inviáveis seriam expressivos. Apenas a redução de estruturas redundantes — prefeitos, vereadores, secretarias, cargos comissionados, já representaria bilhões de reais economizados anualmente, recursos que poderiam ser redirecionados para saúde, educação e infraestrutura. Além disso, cidades incorporadas poderiam aproveitar a escala administrativa maior de municípios vizinhos, com melhor capacidade de planejamento e execução de políticas públicas. Os riscos, como a perda de identidade local e a concentração de serviços nas sedes maiores, poderiam ser mitigados por distritos administrativos descentralizados e mecanismos de participação popular.
Se o Brasil reduzisse em 20% o número de municípios inviáveis, estima-se que bilhões poderiam ser economizados apenas em custeio administrativo. Em um cenário de digitalização crescente, com serviços públicos sendo cada vez mais oferecidos de forma online, a necessidade de manter milhares de prefeituras pequenas com estruturas físicas e burocráticas caras se torna ainda menos justificável. A transformação digital e o governo eletrônico permitem que municípios menores mantenham serviços essenciais sem a necessidade de uma máquina política tão pesada.
O problema da crise fiscal municipal não é periférico: ele alimenta o Custo Brasil, aumenta a dependência de estados e União, desestimula a iniciativa local e perpetua desigualdades regionais. Mas, ao mesmo tempo, abre espaço para uma agenda de modernização. Tratar o município como um CNPJ é reconhecer que a sustentabilidade fiscal, a eficiência e a responsabilidade administrativa são condições universais, seja para empresas, seja para cidades. Com coragem institucional, o Brasil pode enfrentar esse tabu, reduzindo a proliferação de municípios inviáveis e fortalecendo aqueles que realmente têm potencial de prosperidade. Só assim será possível construir uma federação mais equilibrada, em que as cidades deixem de ser símbolos de dependência para se tornarem verdadeiros motores de desenvolvimento e bem-estar social.