A Revolução Permanente: Trotsky, o século XX e os ecos no presente
A teoria da Revolução Permanente, de Leon Trotsky, é uma das formulações mais influentes e debatidas entre marxistas no século XX. Nascida a partir da Revolução de 1905 e consolidada em 1929, a obra surgiu como contraponto direto à ideia de “socialismo em um só país” defendido por Stálin. O embate entre ambos expressava divergências sobre estratégia, internacionalismo e o destino da revolução mundial.
Enquanto Stálin defendia a possibilidade de construir o socialismo isoladamente na União Soviética, Trotsky via isso como uma contradição insustentável. Para ele, a revolução não poderia se restringir a um ato único, mas deveria ser um processo contínuo, internacional e permanente. Hoje, mais de um século depois, ainda é possível encontrar nessa teoria as bases para compreender o pensamento e a estratégia dos marxistas ao longo dos tempos.
O núcleo da teoria
Trotsky sintetizou sua concepção em três pilares. O primeiro deles era a ideia de transição da revolução democrática à socialista. Segundo o autor, nos países subdesenvolvidos, sobretudo coloniais e semicoloniais, a burguesia nacional não seria capaz de realizar plenamente as tarefas relacionadas à independência nacional, reforma agrária e modernização institucional, às quais ele chama de tarefas democráticas. Assim, segundo Trotsky, caberia ao proletariado, apoiado pelo campesinato, conduzir a “revolução democrática”, que inevitavelmente se transformaria em socialista.
O segundo pilar era a hegemonia proletária e o papel do campesinato, que determina que a direção da revolução caberia ao proletariado, organizado em partido revolucionário. O campesinato teria, porém, um papel decisivo como aliado, mas, pela sua fragmentação e falta de independência política, não poderia constituir uma força dirigente. A burguesia, por sua vez, tenderia a trair os movimentos populares.
O terceiro pilar, caráter internacional da revolução, afirmou que a revolução socialista não poderia ser contida nos limites nacionais, ao contrário do que era defendido por Stálin. A economia mundial integrada pela divisão internacional do trabalho impedia a construção de uma sociedade socialista isolada. Daí a formulação de que a revolução seria mundial ou não poderia ocorrer.
Críticas e controvérsias
A teoria gerou intensos debates, sobretudo dentro do próprio campo marxista. Stalinistas diziam que Trotsky subestimava o campesinato e queria “pular” a fase democrático-burguesa. O debate ficou ainda mais intenso com Lenin defendendo uma “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”. Entretanto, Trotsky via isso como uma fórmula vaga. Até que, pós-1917, Lenin convergiu à sua posição, reconhecendo a ditadura proletária apoiada nos camponeses.
Outra crítica partiu de Gramsci, segundo o qual a teoria de Trotsky carregava certo mecanicismo, derivando a política diretamente da economia. No Ocidente, argumentava ele, a luta exigia uma “guerra de posição”, uma estratégia de longo prazo para conquistar hegemonia cultural e política, sem depender de uma explosão revolucionária imediata.
As ideias que se perpetuaram
A força da teoria de Trotsky se demonstrou não no campo dos ideais socialistas, mas na leitura de fenômenos sociais. Um deles é a ideia das revoluções como processos permanentes. A história confirma que nenhuma transformação social se encerra no ato da tomada do poder. A Revolução Russa enfrentou disputas internas e externas por décadas; a Revolução Cubana precisou se reinventar constantemente; a Primavera Árabe mostrou que derrubar regimes não garante estabilidade democrática. Em todos esses casos, a revolução foi menos um “evento” e mais um processo, na maioria deles, carregado de retrocessos.
Outra leitura que encontra ressonância nos dias atuais é a ideia de que mudanças estruturais não sobrevivem isoladas. Os constantes debates recentes sobre clima e fluxos migratórios demonstram a teoria. Nenhum país, por mais poderoso, pode enfrentar sozinho a crise ambiental, regular ou planejar um país sem refletir em seus impactos em todo o sistema. Nesse sentido, o internacionalismo de Trotsky ecoa nos dilemas globais e acaba por contradizer as próprias ideias socialistas de planificação da economia. Afinal, como planificar algo que possui tantas interconexões e interdependências, contando com a racionalidade limitada do ser humano?
Um dilema que permanece contemporâneo é o entre nacionalismo e internacionalismo: o embate entre “socialismo em um só país” e “revolução internacional” encontra paralelos atuais nas tensões entre nacionalismo econômico em exemplos recentes como o Brexit, as políticas protecionistas dos Estados Unidos e as guerras comerciais entre China e Estados Unidos, além dos casos de cooperação multilateral (acordos climáticos, tratados globais de comércio), também enquadrados sob o rótulo de “globalismo” por algumas correntes.
O que não se confirmou
Ao mesmo tempo, partes essenciais da teoria não se concretizaram. A classe operária mundial não se tornou o sujeito revolucionário global que Trotsky previa. Em vez disso, o capitalismo se mostrou capaz de adaptação, resolvendo problemas humanitários históricos como a fome, a pobreza e o subdesenvolvimento.
Ainda que os Estados tenham crescido ao longo do século XX, algumas democracias liberais prosperaram ao redor do mundo e pouquíssimos países perseguiram o socialismo. Aqueles que insistiram na ideologia acabaram caindo no ciclo do atraso. Assim, a aposta de Trotsky em um socialismo inevitável não se realizou. O capitalismo não apenas sobreviveu como se expandiu globalmente, consolidando-se como ordem dominante, ainda que alvo de críticas e crises recorrentes.
Conclusão
A Revolução Permanente não deve ser lida hoje como um manual de previsões, mas como uma lente interpretativa do viés marxista da época. Trotsky errou ao imaginar que a revolução socialista internacional seria inevitável e liderada pela classe operária, mas parece ter acertado ao explicar a natureza processual e permanente das transformações sociais e a impossibilidade de sustentá-las de forma isolada, sem articulação internacional.
Ao reler Trotsky no século XXI, percebe-se menos uma profecia e mais uma reflexão: as grandes mudanças da história são sempre disputadas, interdependentes e inacabadas. Se o socialismo universal não se materializou, o alerta permanece válido: nenhuma revolução, seja política, tecnológica ou ambiental, se sustenta sem compreender sua dimensão global e seu caráter contínuo. Compreender o racional de quem defende o socialismo deve ser o primeiro passo para evitar que essa doutrina social, política e econômica volte a assombrar o mundo moderno com seus atrasos.
*Isaías Oliveira é Associado I do IFL-BH.